Comentários ao Tratado da Verdadeira Devoção,
por Plinio Corrêa de Oliveira

São Luís Maria Grignion de Montfort
São Luís Maria Grignion de Montfort





I - Introdução


Descoberto em meados do século XIX, o “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”, de São Luís Maria Grignion de Montfort, exerceu e exerce ainda poderosa influência nos meios católicos.

Julgamos, por isso, que interessará aos que se empenham na defesa das tradições da civilização ocidental, o conhecimento desta obra. Esta a razão porque difundimos os comentários que a respeito dela fez o Prof. Plinio.

Uma vez que são inapreciáveis esses comentários referentes ao livro marial por excelência, formulamos nossos votos de que os leitores possam tirar alto benefício desse substancioso material para estudo e reflexão.

Apresentação


Estas conferências foram pronunciadas em 1951 para futuros sócios-fundadores da TFP brasileira, precisamente aqueles que se reuniam então no n° 665 da Rua Martim Francisco, em São Paulo.

Circulou, desde essa época, um fascículo mimeografado contendo a anotação dessas conferências. Sob vários aspectos, o texto que ora se publica completa em muito o contido naquele fascículo, pelas seguintes razões:

1) quase uma quarta parte da presente matéria é inédita, isto é, por motivos circunstanciais não consta do fascículo mimeografado a que aludimos acima.

2) O texto antigo não foi objeto da indispensável adaptação da linguagem falada para a escrita.

O que ora difundimos foi cuidadosamonte adaptado por uma equipe experimentada, que teve o especialíssimo cuidado de não ultrapassar, na revisão, o âmbito da tarefa que lhe foi confiada, não fazendo modificações supérfluas.

* * *

Não nos será difícil atribuir uma grande importância a esse trabalho, de alimentarmos em nós o desejo ardente de que a devoção a Nossa Senhora esteja sempre no foco mais central de nossa atenção; de que nossas almas cheguem um dia a respirar Nossa Senhora como nossos corpos respiram o ar; de que, como disse o Prof. Plinio, esta devoção seja de longe a maior de nossas virtudes, à maneira de hélice que precede o avião, arrastando-o atrás de si.

Notas

1. Os títulos aqui utilizados inteiramente com letras maiúsculas, pertencem à edição-tipo do “Tratado da verdadeira Devoção”.

2. A abreviatura “top.” refere-se aos tópicos do “Tratado da Verdadeira Devoção”. Esse sistema de números progressivos, correspondentes à sucessão das ideias, consta não só das edições em língua portuguesa, mas também da edição-tipo francesa.

3. Os “Comentários” intencionalmente não abrangem todos os tópicos do “Tratado da Verdadeira Devoção”. Muitas passagens foram analisadas de maneira geral; outras não foram comentadas ou por não apresentarem particular necessidade, ou por pertencerem ao patrimônio de conhecimentos mariológicos correntes. Pois há muitas passagens no livro de São Luis Maria Grignion de Montfort que dispensam explicações, como, por exemplo, o modo pelo qual se deve rezar a Consagração (Cap. VIII), as novenas e as orações que a devem preceder.

4. É muito conveniente, necessário mesmo, ter em mãos o “Tratado da Verdadeira Devoção a Santíssima Virgem”, para ir com ele acompanhando, pari passu, estes comentários.

Nossa Senhora, Sede da Sabedoria (Sedes Sapientiae).
Nossa Senhora, Sede da Sabedoria
(Sedes Sapientiae).

Introdução


No “Tratado da Verdadeira Devoção” interessam-nos alguns aspectos principais, que convém destacar no início de nossos comentários.

Em primeiro lugar, podemos notar o aspecto estritamente teológico da obra, na qual São Luís Maria Grignion de Montfort analisa a devoção a Nossa Senhora, os meios de A honrarmos, de Lhe darmos graças pelos benefícios recebidos, etc.

Em segundo lugar, podemos destacar o papel de Nossa Senhora na luta contra o demônio e os inimigos da Igreja. São Luís Grignion adota e enriquece a idéia, já exposta por Santo Agostinho e desenvolvida posteriormente por Mons. Henri Delassus, sobre a existência de uma luta entre duas cidades - a Cidade de Deus e a cidade do demônio - como sendo o âmago de toda a História.

Em seguida apresenta o papel de Nossa Senhora na Cidade de Deus.

No que se refere ao papel da Virgem Santíssima na luta contra os agentes da Revolução, ele não fala explicitamente nem uma só vez. No entanto, toda a teologia dessa luta encontra suas raízes no livro de São Luís Grignion.

Ora, é muito importante acentuar tudo isto, por ser este livro uma garantia de que seguindo estas idéias permanecemos unidos ao espírito e à doutrina da Igreja.

Em terceiro lugar, interessa-nos a obra a título histórico. Como sabemos, São Luís Grignion viveu no tempo de Luís XIV, que, sob certos aspectos, representa um ápice da História, a partir do qual a Humanidade não fez outra coisa senão descer.

Ele faz uma descrição da sociedade do seu tempo, na qual se vêem já ferver os germes da Revolução Francesa.

Vemos então um grande santo, que foi ao mesmo tempo um grande contrarrevolucionário, apontando, já naquela época, a existência da mesma Revolução que então se formava nas entranhas da sociedade francesa.

O nexo entre São Luís Grignion e a Revolução é, aliás, muito interessante. Ele foi vítima de uma oposição irredutível dos bispos jansenistas franceses.

De excomunhão em excomunhão, de suspensão de ordens em suspensão de ordens, acabou reduzido a pregar apenas em duas dioceses da França.

São Luís Grignon redigindo o Tratado St. Laurent-sur-Sèvre, França.
São Luís Grignon redigindo o Tratado
St. Laurent-sur-Sèvre, França.
Essas dioceses foram justamente aquelas em que mais tarde não penetraria a Revolução Francesa; em que o povo lutaria ao lado do clero contra os insurretos; em que os católicos marchariam de encontro às hostes revolucionárias ao cântico de hinos religiosos, que seus antepassados tinham ouvido de São Luís Grignion.

Pode-se assim delinear no mapa da França: a parte vacinada contra a Revolução foi a região por ele evangelizada; na zona dominada pelos jansenistas, que resistira à sua evangelização, a Revolução teve livre curso.

Por último, interessa-nos o “Tratado da Verdadeira Devoção” pelo aspecto profético que o santo lhe imprimiu.

São Luís Grignion é profeta no sentido restrito que esta palavra tem depois de encerrada a Revelação oficial, isto é, as suas profecias não são oficiais e obrigatórias como as da Escritura.

Mas sem dúvida ele é dotado por Deus do carisma da profecia, e isto se percebe pela leitura de seu livro.

Ele profetiza acontecimentos que fazem antever a Revolução Francesa e a crise de nossos dias, e afirma também com antecipação a imensa vitória da Igreja Católica através de uma nova era do mundo, que será uma era marial.

São Luís Maria Grignion de Montfort previu um reino de Maria que virá, e este reino será a plenitude do reino de Cristo.

Entretanto, São Luís Grignion não escreveu quatro tratados sobre estas quatro matérias, mas um só.

E os tópicos referentes a estes quatro aspectos não aparecem na ordem em que os mencionamos, mas estão dispersos pela obra. Na medida das possibilidades, explicaremos segundo estes quatro critérios cada capítulo que formos comentando.




Finalidade do “Tratado da Verdadeira Devoção”



Finalidade principal da Verdadeira Devoção de Nossa Senhora: propagar o Reino de Cristo e preparar a vinda de Jesus Cristo ao mundo

Encontramos no tópico 13 do “Tratado” o fundo do pensamento contido na sua introdução:

“Meu coração ditou tudo o que acabo de escrever com especial alegria, para demonstrar que Maria Santíssima tem sido até aqui desconhecida, e que é esta uma das razões por que Jesus Cristo não é conhecido como deve ser”.

Eis a razão de ser da introdução e de todo o livro: Maria Santíssima é desconhecida; Maria Santíssima deve ser conhecida; e, sendo conhecida, virá o reino de Cristo.

O livro destina-se, pois, a propagar a devoção a Nossa Senhora, para que venha o reino de Cristo.

Trata-se, portanto, de uma obra de larga visão e de alcance histórico muito amplo, fixando-se no desejo de trazer o reino de Cristo para um mundo que não o possui, fazendo-o preceder, em certo sentido, pelo reinado de Maria Santíssima.

A razão teológica pela qual o reino de Cristo será precedido pelo reinado de Maria, São Luís Grignion a coloca no tópico 1:
Foi por intermédio da Santíssima Virgem Maria que Jesus Cristo veio ao mundo”,
isto é, se Maria Santíssima não tivesse vindo ao mundo, Jesus Cristo não teria vindo;
e é também por meio d'Ela que Ele deve reinar no mundo”, ou seja, a devoção a Jesus Cristo deve vir ao mundo por intermédio de Maria Santíssima. Espalhar a devoção a Maria Santíssima é, pois, nesta perspectiva, a maior obra a que um homem pode se dedicar.

Devoção a Nossa Senhora e preparação do reino de Cristo 

Este objetivo de São Luís Grignion presta-se desde logo a um comentário.

Nossa Senhora do Carmo, Portugal O começo da regeneração de todas as coisas está na piedade
Nossa Senhora do Carmo, Portugal
A regeneração de todas as coisas começa pela piedade
O santo profeta propõe-se a preparar o futuro reino de Cristo fazendo o que lhe parece ser o mais essencial, o mais importante, o mais urgente, o que, na ordem concreta dos fatos, produzirá quase que automaticamente o resto: espalhar a perfeita devoção a Maria.

A derrota do espírito do mundo e a restauração da civilização sobre os princípios da Igreja Católica não se começam, portanto, por meio da política, das obras, do talento ou da ciência.

Na época mesma de São Luís Grignion, Bossuet encantava e deslumbrava Versailles e Paris com seus sermões; entretanto, para evitar a derrocada religiosa da França, não foram decisivos.

O começo da regeneração de todas as coisas está na piedade, no afervoramento da vida interior, está propriamente nos fundamentos religiosos da vida de um povo.

O apostolado essencial é de caráter estritamente religioso: afervorar, formar na piedade, formar o caráter. O mais são consequências, são complementos. Importantes, é verdade, mas complementos.

E a grande lição que São Luís Maria Grignion de Montfort fixa já no início do “Tratado”, e desenvolve mais longamente depois, é a de que na formação do caráter é condição básica e indispensável a devoção a Nossa Senhora.

Possuindo-se verdadeiramente esta devoção, o caráter terá todos os meios sobrenaturais necessários para florescer, com a correspondência da vontade.

Não se formando esta devoção, o próprio regime de expansão da graça na alma fica comprometido, e nada será possível conseguir.

Portanto, a devoção a Nossa Senhora é condição necessária para tudo quanto diz respeito à salvação individual, à salvação da civilização e à salvação eterna de todos quantos constituem, em dado momento, a Igreja militante.

São Luís Grignion tinha pois em mente, com esse livro, uma obra da mais alta importância para a renovação dos séculos futuros.

A nós cabe, portanto, ser sôfregos em possuir esta devoção a Nossa Senhora, por ele pregada.

Nossa Senhora de Valenciennes, França a devoção a Maria Santíssima é o canal  por onde passam todas as graças
Nossa Senhora de Valenciennes, França
a devoção a Maria Santíssima é o canal
por onde passam todas as graças
Em outros termos, fomos chamados a uma obra definida, com objetivos definidos, e só a realizaremos se tivermos em nosso espírito esta devoção.

Se ela é, como vimos, indispensável para que o mundo se regenere em Nosso Senhor, e se queremos trabalhar para isso, é necessário ir em busca desta devoção.

O “Tratado da Verdadeira Devoção” não é, pois, um livro qualquer de piedade, apresentando uma devoção a algum santo, boa por certo, mas que se pode indiferentemente ter ou não ter.

A devoção a Nossa Senhora é uma devoção essencial, “conditio sine qua non” para nosso apostolado. E só a atingiremos no mais alto grau com a forma e os fundamentos desenvolvidos por São Luís Grignion de Montfort.

D. Chautard explana a tese de que a vida interior é fundamental para o desenvolvimento das obras, e de que o apóstolo deve possuí-la para que sejam fecundas.

Explica, ainda, o que é a vida interior e quais os meios para obtê-la; entre estes, refere-se à devoção a Nossa Senhora.

São Luís Grignion pressupõe todas estas afirmações (que já eram doutrina da Igreja, e que seriam desenvolvidas por D. Chautard) mostrando, porém, que a viabilidade delas está na dependência de uma grande devoção a Nossa Senhora.

Pressupondo o essencial - a vida interior - ele toma um caminho que é de algum modo o essencialíssimo: a devoção a Maria Santíssima.

É este o canal por onde passam todas as graças necessárias para vivificar toda a estrutura da vida interior e da vida de apostolado.




Maria Santíssima é insuficientemente conhecida


Nossa Senhora de Puy-en-Velay, França
Nossa Senhora de Puy-en-Velay, França
Como vimos, no final da introdução São Luís Grignion diz: “Meu coração ditou tudo o que acabo de escrever com especial alegria, para demonstrara que Maria Santíssima tem sido até aqui desconhecida” (tópico 13).

Portanto, já na introdução ele inicia esta demonstração, e a desenvolverá depois através do livro. Por “desconhecida” deve-se entender “muito menos conhecida do que Sua excelência e Seus admiráveis predicados exigem”.

Assim, pois, na introdução estão ditas muitas coisas que devem causar surpresa aos leitores. Vejamos se em nós elas causam alguma surpresa. Servirá de teste para ver se conhecemos, nós também, a Nossa Senhora.
Tópico 1: “Foi por intermédio da Santíssima Virgem Maria que Jesus Cristo veio ao mundo, e é também por meio d'Ela que Ele deve reinar no mundo”.
Esta verdade, nós não a encontramos no comum dos autores hoje em voga. E sobretudo não a encontramos afirmada com esta incisão, com esta clareza, com esta perfeição.

Ela é conhecida pela maioria dos fiéis, é certo, mas de modo difuso, vago e inconsistente. É raríssimo que a encontremos explicitada com esta clareza lapidar, com esta riqueza de sentido condensada em poucas palavras.

Em São Luís Grignion esta verdade é um ensinamento preciso e básico, que ele ainda desenvolverá ao longo da obra.

Tópico 2: “Toda a sua vida Maria permaneceu oculta; por isso o Espírito Santo e a Igreja a chamam “Alma Mater” - Mãe escondida e secreta.

Tão profunda era a sua humildade, que para Ela o atrativo mais poderoso, mais constante, era esconder-se de si mesma e de toda criatura, para ser conhecida somente de Deus”.
Esta verdade é geralmente mais conhecida.

Tópico 3: “Para atender aos pedidos que Ela Lhe fez de escondê-La, empobrecê-La, Deus providenciou para que oculta Ela permanecesse em Seu nascimento, em Sua vida, em Seus mistérios, em Sua ressurreição e assunção, passando despercebida aos olhos de quase toda criatura humana.

Nossa Senhora da Vitória. Málaga, Espanha
Nossa Senhora da Vitória. Málaga, Espanha
Seus próprios parentes não A conheciam; e os Anjos perguntavam muitas vezes uns aos outros: `Quæ est ista? '... - Quem é Esta? (Cânt. 3, 6; 8, 5), pois que o Altíssimo lhas escondia; ou, se algo lhes desvendava a respeito, muito mais, infinitamente, lhes ocultava”.

Não é também uma verdade nova para muita gente. Sabemos que, devido a uma prece de Nossa Senhora, os Santos Evangelhos quase não se referem a Ela; e que, por sua vez, a Teologia teve que fazer um admirável trabalho de dedução das verdades contidas na Escritura, para formar através dos séculos a Mariologia.

Tópico 4: “Deus Pai consentiu que jamais, em Sua vida, Ela fizesse algum milagre, pelo menos um milagre visível e retumbante, conquanto lhe tivesse outorgado o poder de fazê-los.

Deus Filho consentiu que Ela não falasse, se bem que lhe houvesse comunicado a sabedoria divina. Deus Espírito Santo consentiu que os apóstolos e evangelistas a Ela mal se referissem, e apenas no que fosse necessário para manifestar Jesus Cristo. E, no entanto, Ela era a Esposa do Espírito Santo”.

É de se notar que o Espírito Santo, ao ditar os Livros Sagrados, calou-se sobre Ela, tal a força da prece que Nossa Senhora dirigira a Deus, para permanecer oculta.

Até aqui a doutrina não é nova, por referir-se à humildade de Nossa Senhora. Ao tratar a seguir da Sua grandeza, contudo, veremos que Ela é muito menos conhecida.

Deve-se isto a uma espécie de complexo que há em acentuar sempre o aspecto humilde e pobre, mostrando apenas a sombra e a penumbra em que Ela quis se ocultar, sem mostrar aquilo que constitui o contraforte luminoso e muito legítimo de seu ser.




Excelências das faculdades da alma de Nossa Senhora


Nossa Senhora do Rosário, conhecida como 'La Naval', Filipinas.
Nossa Senhora do Rosário,
conhecida como 'La Naval', Filipinas.
Tópico 5: “Maria é a obra-prima por excelência do Altíssimo”.

Ao olharmos uma noite de céu estrelado, em lugar de considerarmos apenas as grandezas de Deus - pensamento aliás muito louvável - saberemos nós contemplar também Maria Santíssima, incomparavelmente maior e mais formosa do que cada um dos astros que estão no céu, e de todos eles no seu conjunto?

Sendo Ela a obra-prima da criação, toda a beleza, toda a grandeza, toda a excelência que Deus pôs no firmamento é pequena em relação à que pôs n'Ela.

O céu que vemos não é senão uma imagem, uma figura da grandeza de Nossa Senhora. Apesar de ser mera criatura, tudo quanto n'Ela há excede muito, em perfeição, todas essas belezas criadas, e isto de um modo inexprimível.

Inteligência incomparável


Quando nos deparamos com um homem muito inteligente, podemos ter o pensamento salutar de que ele, comparado a Nossa Senhora, é mais ignorante que o mais primário analfabeto comparado ao maior dos sábios.

São Tomás de Aquino, comparado a Ela, era um ignorante, tal a plenitude e a perfeição de Seu conhecimento.

Sua inteligência não tem somente toda a perfeição de uma inteligência humana à qual nada há que acrescentar, mas possui ainda o conhecimento de todas as coisas que à mais alta das criaturas é dado conhecer.

Aquilo que no mundo pode haver de mais inteligente, comparado a Nossa Senhora, é zero, é cisco, é nada. Toda a inteligência possível a uma criatura tão excelsa, alargada pela plenitude das graças do Espírito Santo, Ela a tem.

É algo, portanto, excelente e sumamente inconcebível. Quando rezamos a Ela, devemos ter presente esta excelência que lhe é própria - a de ter uma inteligência incomparável.

Assim como há dados misteriosos da natureza que escapam totalmente ao nosso conhecimento - não sabemos, por exemplo, quantos grãos de areia existem em todas as praias da Terra - assim também não temos termo algum de comparação para compreendermos a riqueza da inteligência de Nossa Senhora.

É algo que está fora do nosso alcance, e que não nos é possível imaginar. Pois bem, esta é uma verdade que deve estar sempre muito presente no cabedal dos conhecimentos que sobre Ela possuímos.

Vontade Heroica


São Luis Maria Grignion de Montfort pregou incansavelmente missões para reafervorar a devoção a Nossa Senhora.
S.Luis Maria Grignion de Montfort pregou incansavelmente
missões para reafervorar a devoção a Nossa Senhora.
Passemos às perfeições de Nossa Senhora no que se refere à Sua vontade. Tomemos alguns fatos de heróica e sobrenatural força de vontade:

1) São Lourenço, que, colocado sobre uma grelha, suporta heroicamente o fogo até que, ao cabo de algum tempo, desafia: “Podem virar do outro lado, pois deste já estou assado”;

2) Um mártir da Tebaida, que, amarrado a uma mesa, foi tentado de todas as formas por uma mulher; e não tendo mais como resistir à tentação, mordeu a própria língua e cuspiu-a fora, a fim de evitar o consentimento.

São fatos que demonstram um verdadeiro e admirável heroísmo. Mas nada são, comparados ao heroísmo de Nossa Senhora, que os supera acima de qualquer proporção. Não passam de um grão de areia, comparado ao globo terrestre.

O sofrimento que Ela teve consentindo na Paixão de Nosso Senhor, desejando até o último instante sua consumação plena e tudo sofrendo com Ele, é algo que não pode ser comparado a nada de humano, nem sequer ser expresso em linguagem desta Terra. Perto de sua “com-Paixão”, os exemplos dados tornam-se insignificantes.

Ela não é uma grande santa apenas por ser a Mãe de Deus. É bem verdade que este é o título essencial de Sua santidade, a razão pela qual recebeu toda as graças.

Mas é preciso notar ainda que Ela correspondeu à graça e se tornou uma grande santa pela perfeição insondável de sua correspondência, perto da qual toda a generosidade de todos os santos nada é. Santo Anselmo no-lo exprime lapidarmente:

“Aquilo que todos os santos podem conVosco, Vós o podeis só, e sem nenhum deles. Se Vós guardais o silêncio, ninguém rogará por mim, ninguém me ajudará, mas falai, e todos rogarão por mim, todos se apressarão a me socorrer”.

Isto porque Ela é a Mãe de Deus, Medianeira de todas as graças, e Sua virtude transcende numa proporção inconcebível a de todos os demais santos.

Destas afirmações, nem um vírgula se poderá tirar. E é preciso reconhecermos que não temos disto uma noção digna; ficamos, em geral, em figuras de retórica:

“Tu, a mais bela, a mais formosa...”. Embora verdadeiras, é mister aprofundá-las.

Sensibilidade harmoniosa


Falamos da inteligência e da vontade de Nossa Senhora. Falemos da Sua sensibilidade.

Nada há de mais desregrado no homem do que a sensibilidade, como efeito do pecado original. Sentimos, por exemplo, inclinação para muitas coisas que moralmente não poderíamos querer.

Consequentemente, precisamos manter uma luta acesa entre a tendência que temos para o bem e a nossa inclinação para o mal.

Em Nossa Senhora, concebida sem pecado original, não havia esses desequilíbrios. Sua sensibilidade, de uma delicadeza e de uma força perfeitas em todas as suas vibrações e em todos os seus movimentos, era inteiramente ajustada a tudo quanto a razão e a vontade podiam desejar.

Era um ser todo de harmonia, no qual não havia nenhuma das incontáveis misérias provocadas em nós pelo pecado original. Ela foi imaculada desde o primeiro instante de Seu ser.

Nossa Senhora do Rosário, dita 'de los Húmeros', Sevilha, Espanha.
Nossa Senhora do Rosário, dita 'de los Húmeros',
Sevilha, Espanha.
As perfeições de Maria Santíssima ultrapassam a capacidade humana de conhecimento.

Retomemos o tópico 5: “Maria é a obra-prima por excelência do Altíssimo, cujo conhecimento e domínio Ele reservou para Si”.

Que belíssima noção! Maria Santíssima é tão grande que o próprio São Luís Grignion, que não é senão um seu pequeno menestrel, já é quase inesgotável quando fala d'Ela.

Ele afirma ser Nossa Senhora tão enorme, tão colossal - e o que são estes adjetivos, que de longe Ela transcende? - que só Deus A conhece em toda a extensão das Suas perfeições. Nós não podemos sequer ter disto uma pálida ideia.

Há n'Ela belezas, há culminâncias, há encantos, há perfeições, há excelências que escapam e sempre escaparão completamente ao nosso olhar, e que são somente por Deus contempladas.

Imaginemos esses universos, essas constelações imensas de estrelas, que o homem não conhece e possivelmente jamais conhecerá, e cujas belezas ficam reservadas à exclusiva contemplação de Deus.

Assim é Maria Santíssima. Há n'Ela coisas que nunca homem nenhum conhecerá, reservadas que são ao conhecimento exclusivo de Deus Nosso Senhor.

N'Ela há esta nota de incognoscibilidade: paramos extasiados a Seus pés, compreendendo, após ter compreendido muito, que o mais que se compreendeu é que quase nada compreendemos. Estamos sempre no Seu pórtico, um pórtico para nós demasiadamente grande, tal a Sua excelência.

Continuemos o tópico 5: “Maria é a Mãe admirável do Filho, a quem aprouve humilhá-La e ocultá-La durante a vida para Lhe favorecer a humildade, tratando-A de mulher - “mulier” (Jo 2, 4; 19, 26) - como a uma estrangeira, conquanto em Seu coração A estimasse e amasse mais que a todos os anjos e homens”.

São Luís Grignion desenvolveu neste parágrafo a ideia de que, durante a vida, também Nosso Senhor A manteve ignorada; apenas Ele a conhecia.

“Maria é a `fonte selada' (Ct 4, 12) e a esposa fiel do Espírito Santo, onde só Ele pode penetrar”. Retorna aqui a ideia de Nossa Senhora como criatura reservada ao conhecimento de Deus.

“Maria é o santuário, o repouso da Santíssima Trindade, em que Deus está mais magnífica e divinamente que em qualquer outro lugar do universo, sem excetuar seu trono sobre os querubins e serafins”.
Sabemos que os Anjos da guarda ocupam os graus inferiores na hierarquia celeste.

Em Nossa Senhora há belezas e perfeições maiores do que todas as contidas nas galáxias ou nos conjuntos estelares mais maravilhosos.
Em Nossa Senhora há belezas e perfeições maiores do que todas
as contidas nos conjuntos estelares mais maravilhosos
Tendo certa vez aparecido a uma santa o seu anjo da guarda, ela ajoelhou-se, pensando estar na presença do Altíssimo. A grandeza dos anjos é tal que, no Antigo Testamento, em várias aparições, os homens julgavam que fossem o próprio Deus.

E no Céu há miríades de Anjos. Em que assombro ficaríamos, se os víssemos a todos e ao mesmo tempo! Nossa Senhora, contudo, está acima de todos eles reunidos.

Assim, diante de Sua insondável alma, nós nos deparamos novamente com termos imperfeitos de comparação, e o melhor que podemos dizer é que são totalmente insuficientes.

“... e criatura alguma, pura que seja, pode aí penetrar sem um grande privilégio”.

Existe, pois, uma categoria de criaturas privilegiadas que podem penetrar no conhecimento de Nossa Senhora.

Essas criaturas privilegiadas - São Luís Grignion no-lo explica - são aquelas a quem Deus dá, por liberalidade, o dom que o comum das pessoas não têm, de conhecerem e praticarem a devoção a Nossa Senhora do modo especial por ele ensinado.

E os “apóstolos dos últimos tempos”, de que ele nos fala, terão esse dom. Por isso serão terríveis no combate ao mal e eficacíssimos na defesa do bem.

Serão almas elevadíssimas, que terão a graça de penetrar neste umbral da devoção a Nossa Senhora.









Outras qualidades de Maria Santíssima


Nossa Senhora do Carmo, Espanha.
Nossa Senhora do Carmo, Espanha.
Tópico 6: “Digo com os santos: Maria Santíssima é o paraíso terrestre do novo Adão”.

O paraíso terrestre era de encantos, de delícias, de perfeições. São Luís Grignion diz que Nosso Senhor estava no ventre puríssimo de Maria Santíssima com a excelência e a perfeição com que Adão estava no paraíso; Nossa Senhora, durante a concepção, era o paraíso do novo Adão, Jesus Cristo.

Quando recebemos na comunhão este mesmo Jesus Cristo, acostumado que está a tais paraísos, perguntamo-nos: o que achará Ele da nossa hospitalidade? Oferecemos-Lhe ao menos - a Ele que condescende em descer à nossa choupana - o modestíssimo luxo de uma casa limpa?

“... no qual Este se encarnou por obra do Espírito Santo, para aí operar maravilhas incompreensíveis”.

Nosso Senhor, durante a Sua vida em Maria Santíssima - e esta é uma belíssima ideia que São Luís Grignion desenvolverá mais tarde - quando Ela era o tabernáculo no qual Ele habitava, já aí operou maravilhas.

São Luís Grignion compôs uma oração dirigida a Nosso Senhor enquanto vivendo em Maria Santíssima: “O Iesu, vivens in Maria”.

“... É o grande, o divino mundo de Deus, onde há belezas e tesouros inefáveis. É a magnificência de Deus, em que Ele escondeu, como em Seu seio, Seu Filho único, e n'Ele tudo que há de mais excelente e mais precioso.

“Oh! Que grandes coisas escondidas Deus todo-poderoso realizou nesta criatura admirável, di-lo Ela mesma, como obrigada, apesar de Sua humildade profunda: `Fecit mihi magna qui potens est' (Lc 1, 49)”.

O sentido inteiro deste canto do Magnificat, só o compreenderemos se considerarmos quem é Nossa Senhora. Realmente, é preciso lembrarmo-nos do poder de Deus, para compreender que Ele possa ter operado essas maravilhas que n'Ela operou.

“... O mundo desconhece estas coisas porque é inapto e indigno”.

São Luís Grignion referiu-se a uma raça (no sentido teológico, e não biológico) misteriosa, à qual Deus concede o favor único de poder penetrar nos umbrais desta devoção.

Ele nos fala agora de uma raça má, que por sua maldade, por sua impureza, por sua indignidade, detesta tudo isto. É o reverso da medalha.




Devoção a Nossa Senhora: característica da santidade


São Luis Grignon de Montfort.
Estátua na basílica de São Pedro, Vaticano.
Tópico 7: “Os santos disseram coisas admiráveis desta cidade santa de Deus; e nunca foram tão eloquentes nem mais felizes - eles o confessam - do que ao tomá-La como tema de suas palavras e de seus escritos”.

Este trecho evidencia-nos uma verdade muito importante. Não se deve pensar que a devoção a Nossa Senhora é um estilo de santidade inaugurado por São Luís Grignion ou levado por ele ao último grau de intensidade.

A devoção especialíssima e intensíssima a Nossa Senhora é característica de todos os santos.

Embora não se possa dizer que todos a tenham levado ao ponto a que a levou São Luís Grignion, estudando a vida de piedade de qualquer deles notamos sempre uma devoção ardentíssima a Ela, que é a dominante logo abaixo do culto a Deus Nosso Senhor.

Essa devoção, contudo, se reveste em cada um de aspectos particulares.

É raro, neste sentido, encontrar algum santo que não tenha encontrado um aspecto novo de piedade em relação a Nossa Senhora.

E não há um só que não conheça dever à intercessão d'Ela não só o seu progresso espiritual, mas até mesmo a sua perseverança.

Todos passaram por duras provas espirituais, das quais se viram livres por uma intervenção especial d'Ela.

São Francisco de Sales, por exemplo, teve em sua juventude uma terrível crise, relativa ao problema de sua predestinação.

Estudando o assunto, ficou como que tragado pelo abismo do problema, e foi duramente assediado pelo demônio, que lhe insuflava qua a predestinação não era para ele. Isto lhe causou uma tremenda depressão.

Começou a emagrecer, a perder a saúde, nada havia que lhe restituísse a paz à alma.

Jesus vive espiritualmente em Maria, sendo Ela a Mãe Puríssima que O engendrou.
Jesus vive espiritualmente em Maria,
sendo Ela a Mãe Puríssima que O engendrou.
Certo dia, rezando diante de uma imagem de Nossa Senhora, pediu-Lhe que, ainda que tivesse que ir para o inferno, mesmo assim lhe fosse dado não ofender a Deus na Terra, pois o que o apavorava do inferno não era o tormento, mas a ideia de ofender eternamente a Deus.

E recitava “Memorare, o piissima Virgo Maria” ("Lembrai-Vos, o piedosíssima Virgem Maria"), que estava escrito embaixo da imagem. Ele mesmo nos conta que, logo após o término da oração, restabeleceu-se em sua alma uma paz admirável.

Viu então claramente todo o jogo do demônio, de que estava sendo vítima, e recuperou aquela serenidade que viria a ser a nota dominante de toda a sua vida espiritual.

Encontramos na vida de todos os santos esta constante, de uma particular devoção a Nossa Senhora.

Ela é, pois, uma característica segura da verdadeira piedade, e devemos absolutamente duvidar da santidade de alguém que não a possua.

Seria sofisma dizer algo que é especial para todos, por isso mesmo não o será para ninguém.

Uma mãe de muitos filhos tem, para com cada um, carinho especial; e cada filho ama a própria mãe de um modo particular.

Assim, devemos cada qual amar Nossa Senhora de maneira inteiramente própria, especial e inconfundível.

Ela, por sua vez, terá para conosco um carinho que não será um carinho genérico, de quem dissesse: “toda aquela gente, eu a amo”; mas um carinho todo particular, que pousará sobre cada um de nós, individualmente considerados, como se só nós existíssemos na face da Terra.




Maria Santíssima é a Onipotência Suplicante


Imagem de Nossa Senhora na igreja de Todos os Santos, Londres.
Imagem de Nossa Senhora na igreja de Todos os Santos, Londres.
“...E depois, proclamam que é impossível perceber a altura dos Seus méritos, que Ela elevou até ao trono da Divindade; que a amplitude da Sua caridade, mais extensa que a Terra, não se pode medir; que está além de toda compreensão a grandeza do poder que Ela exerce sobre o próprio Deus”.

Por ser este Seu poder tão grande, que se exerce até sobre o próprio Deus, os teólogos têm-Na chamado de “onipotência suplicante”.

Parece haver, à primeira vista, uma contradição nos termos, pois quem suplica, nada pode.

Ela, porém, é de fato a onipotência suplicante, porque Sua súplica pode tudo sobre Aquele que é onipotente. Desta maneira Ela pode, na prática, absolutamente tudo.

Todo o exposto nesta introdução não nos deve ficar como tiradas piedosas e ocas.

É preciso que fique compreensível, razoável, como tudo que brota da razão com base na Fé.

Devemos encontrar nisto substancioso alimento; deve servir-nos de combustível, e não apenas de incenso.

Imagem de São Luis Grignion de Montfort venerada em St. Laurent-sur-Sèvre, onde está seu túmulo.
Imagem de São Luis Grignion de Montfort
venerada em seu túmulo em St. Laurent-sur-Sèvre
Estas afirmações não devem ficar no vácuo.

É preciso sabermos aplicá-las concretamente em nossa vida espiritual, nas dificuldades, nos problemas, nas lutas.

É preciso lembrarmo-nos de que Nossa Senhora é a onipotência suplicante, e termos n'Ela uma confiança ilimitada.

Mas nem sempre a temos tão arraigada no espírito quanto desejaríamos.

Imaginemos, por exemplo, que Deus apareça à nossa mãe terrena, e lhe dê a possibilidade de nos fazer todo o bem que quiser.

Ficaríamos radiantes, evidentemente, pois tudo conseguiríamos facilmente.

Ora, Nossa Senhora nos ama imensamente mais do que todas as mães terrenas reunidas amariam seu filho único.

Por isso deveríamos ficar muito mais contentes em saber que Ela no Céu olha para nós, do que com a ideia de uma proteção eficacíssima de nossa mãe terrena.




Necessidade da devoção à Santíssima Virgem


Nossa Senhora do Rosário, Andaluzia, Espanha
Nossa Senhora do Rosário, Andaluzia, Espanha

Capítulo I


Este capítulo foi escrito para demonstrar que a devoção à Santíssima Virgem é necessária. Procuremos explicar a tese de São Luís Grignion.

Ele quer demonstrar que, sem uma devoção a Maria Santíssima - mas uma devoção proporcionada às grandezas que acabamos de ver na introdução - não existe vida espiritual possível, pois a vida espiritual exige esta forma de devoção a Maria Santíssima.

Atraio a atenção para o fato de que a demonstração que ele faz dessa tese é muito exata, mas não é muito explícita à primeira vista.

É preciso ler o capítulo com muita atenção, para se compreender onde ele quer chegar. Para tratar da necessidade da devoção a Nossa Senhora ele faz um preâmbulo, e depois desenvolve propriamente a demonstração.

Nesse preâmbulo São Luís Grignion estabelece qual é o alcance da palavra “necessidade”.

Não se trata de dizer que Deus precise absolutamente de Nossa Senhora para salvar as almas; sendo onipotente e sendo perfeito, Ele não necessita de ninguém.

Anunciação do Anjo e Encarnação do Verbo. Ambrogio Lorenzetti (1290 - 1348)
Anunciação do Anjo e Encarnação do Verbo.
Ambrogio Lorenzetti (1290 - 1348)
Assim, poderia Ele ter criado uma situação em que Nossa Senhora não existisse e as almas também se salvassem, pois Ele está acima de tudo.

A necessidade de Nossa Senhora na vida espiritual é de outro gênero. Uma vez que Deus A criou, dando-lhe, por um ato libérrimo de Sua vontade, determinadas perfeições e atribuições, entre as quais a mediação universal, a devoção a Ela é necessária.

Em outras palavras, a Igreja Católica não sustenta que Deus precise de Nossa Senhora, mas que Deus quis que Ela fosse necessária à nossa salvação.

Ele liberrimamente assim o quis, e estabeleceu uma situação em que Ela se tornou necessária.

Na demonstração desta tese, São Luís Grignion supõe uma série de noções que é preciso lembrar, porque ele não as enuncia explicitamente. Neste particular ele se parece com São Paulo.

O Apóstolo vai dizendo as coisas umas após as outras, deixando até algumas frases sem ligação com as anteriores; há em suas epístolas alguns pontos que confundem o espírito.

O próprio São Pedro diz, numa de suas epístolas, que São Paulo é difícil de entender.

Assim, também São Luís Grignion supõe como conhecidos certos pressupostos que é preciso lembrar, para se ter inteiramente claro o fio de seu raciocínio.

Artigo I
Primeiro princípio: Deus quis servir-se de Maria na Encarnação — Importância da Encarnação


Anunciação. Iluminura, Universidade da Califórnia-Berkeley 138
Anunciação. Iluminura,
Universidade da Califórnia-Berkeley 138.
A demonstração que São Luís Grignion faz da necessidade da devoção a Nossa Senhora está baseada no papel que Ela teve na Encarnação. Vamos, antes de tudo, impostar bem a questão.

A primeira tese que é preciso lembrar é a da suma importância da Encarnação na obra da Criação.

Os teólogos discutem entre si um ponto a este respeito.

Dizem alguns que a Encarnação não se teria dado se o homem não tivesse pecado, e outros dizem que ela ter-se-ia dado, ainda que o homem não tivesse pecado.

Daí concluem os primeiros que, embora tendo sido um mal, o pecado original importou em uma vantagem para o homem, e é por isso que a Liturgia canta no Sábado Santo “O felix culpa” – ó culpa feliz, que nos mereceu um tal Salvador. Sem o pecado original, não teríamos tido a felicidade de ter o Salvador.

De um modo ou de outro, quer se admita uma ou outra tese, devemos reconhecer que a Encarnação do Verbo não é um episódio entre outros da História da Humanidade, mas é, como a Redenção, um episódio culminante.

Sendo Deus Aquele que é, exceção feita da geração do Verbo e da processão do Espírito Santo, nunca se passou nada que, de longe, pudesse ser tão importante como a Encarnação do Verbo.

É um fato relacionado com a própria natureza divina, e tudo o que diz respeito a Deus é incomparavelmente mais importante do que tudo que diga respeito ao homem.




Papel de Nossa Senhora na Encarnação


Anunciação e Encarnação do Verbo. Fra Angélico (1395 – 1455) Museo del Prado, Madri
Anunciação e Encarnação do Verbo.
Fra Angélico (1395 – 1455) Museo del Prado, Madri.
A Encarnação de Deus transcende a tudo em importância.

Por esse motivo o papel de Nossa Senhora na Encarnação situa bem o papel d'Ela em todos os planos divinos, e precisamente no que eles têm de mais importante e de mais fundamental.

Achamos admirável, por exemplo, Nosso Senhor ter escolhido Constantino para tirar a Igreja das catacumbas.

Mas o que é isto, perto de ter escolhido Nossa Senhora para n'Ela ser gerado o Salvador? Absolutamente nada.

Nós admiramos muito Anchieta, porque ele evangelizou o Brasil. Mas o que é evangelizar um país, em comparação com o cooperar na Encarnação do Verbo? Nada!

Digamos que se tratasse de salvar o mundo de sua crise atual e de restabelecer o reino de Cristo, e suponhamos que Nosso Senhor escolhesse um só homem para essa tarefa.

Nós acharíamos esta missão algo de formidável, e com razão. Mas o que seria isto, em comparação com a missão de Nossa Senhora?

Nada! Ela situa-se num plano que está fora de comparação com a missão histórica de qualquer homem, inclusive com a de São Pedro, por incrível que pareça, apesar de ter sido ele o primeiro Papa.

Nossa Senhora dos Anjos, Cartagena, Espanha.
Nossa Senhora dos Anjos, Cartagena, Espanha.
O papel de Maria está fora de comparação com o papel de São Pedro.

A respeito de Nossa Senhora, sempre se é obrigado a repetir a expressão “fora de comparação”, porque Ela faz estalar todo vocabulário humano.

Há uma tal desproporção entre Ela e todas as criaturas, que a única coisa segura que se pode dizer é que é fora de comparação.

Lembradas essas noções, devemos concluir que estudar a participação de Nossa Senhora na Encarnação é estudar o Seu papel no acontecimento mais importante de todos os tempos.

E qual foi esse papel?

São Luís Grignion responde, analisando a participação das três Pessoas da Santíssima Trindade na Encarnação – o papel do Padre, do Filho e do Espírito Santo – e depois a cooperação de Nossa Senhora com o Padre, com o Filho e com o Espírito Santo.

A cooperação de Nossa Senhora com o Padre Eterno


Conforme a linguagem das Escrituras, Nosso Senhor foi mandado ao mundo pelo Padre Eterno para salvar os homens.

O Antigo Testamento, numa das suas profecias, diz de Nosso Senhor: “Eis que venho, como está escrito de mim no rolo do livro, para fazer a Tua vontade” (Ps. XXXIX, 8-9).

Jesus Cristo fala constantemente de Seu Pai Celeste, como sendo Aquele que O enviou, Aquele que Se manifestou sobre Ele, considerando-O Seu Filho bem amado, Aquele a Quem Ele invocou quando entregou Seu espírito, dizendo: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?” (Mt. XXVII, 46).

Sendo o Padre Eterno Aquele que nos mandou Jesus Cristo, qual foi o papel de Nossa Senhora neste ato?

A oração de Nossa Senhora na vinda do Messias


Em primeiro lugar, devemos considerar que o mundo não era mais digno de receber a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Em consequência, o Padre Eterno o enviou, não por causa do mundo, mas por causa de Nossa Senhora.

Não só porque foi Ela quem o pediu – e se Ela não tivesse pedido a vinda de Nosso Senhor, Ele não teria vindo – mas Deus Padre O mandou a Ela, porque só Ela era digna de O receber.

Nossa Senhora, Electa ut Sol
Nossa Senhora, Electa ut Sol.
Nessa perspectiva compreende-se melhor a queixa contida no Evangelho de São João: “Veio para o que era seu, e os seus não O receberam” (João, I, 11).

Os seus não O receberiam, mas Nossa Senhora O receberia de modo sublime, e por isso Ele veio. Veio porque encontrou Nossa Senhora no mundo, e se não A tivesse encontrado, não teria vindo.

A vinda d'Ele ao mundo é o produto da presença e das orações da Virgem Santíssima.

Dessa forma colaborou Ela com o ato do Padre Eterno pelo qual Jesus Cristo foi mandado ao mundo.

A participação de Nossa Senhora na fecundidade do Padre Eterno


Além disso, o Padre Eterno comunicou a Nossa Senhora Sua fecundidade, para que Ela pudesse gerar a Jesus Cristo.

O Padre Eterno é de uma fecundidade infinita. Sua fecundidade é tal, que a ideia que Ele tem de Si mesmo já é uma Pessoa Divina.

Pois bem, Ele comunicou a Nossa Senhora Sua fecundidade, para que Ela gerasse a Jesus Cristo e a todos os membros do Corpo Místico de Cristo.

Nossa Senhora é, pois, Mãe dos fiéis, não apenas no sentido alegórico e metafórico (Ela nos quer bem como se fosse nossa mãe), mas é verdadeiramente nossa Mãe na ordem da graça.

E essa maternidade divina existe, porque o Padre Eterno lhe comunicou a Sua fecundidade.









O poder da oração de Nossa Senhora e a nossa vida espiritual



Nossa Senhora em oração.
Igreja dos Santos Filipe e Santiago, Oxford, Inglaterra.
Podemos tirar aplicações para nossa vida espiritual, tanto do fato de a oração de Nossa Senhora ter apressado a vinda do Messias, quanto de ter Ela recebido do Padre Eterno sua fecundidade.

Considerando Nossa Senhora capaz de, com a sua prece, apressar a vinda do Messias, que aplicações podemos tirar?

Devemos primeiramente considerar a Santíssima Virgem no seu zelo pela causa de Deus. Na oração que fazia, Ela certamente considerara – isto é de Fé – a situação, que atingira um ápice de miséria moral, em que tinha caído o povo eleito.

Nessa oração, portanto, Ela desejava ardentemente que Israel fosse reerguido à sua antiga condição. Considerava ainda a decadência da Humanidade, sabendo melhor que ninguém quantas almas estavam se perdendo naquela era pagã, e vendo a glória de Satanás a imperar sobre o mundo antigo.

Maria Santíssima fez então na Terra o papel de São Miguel Arcanjo no Céu. Sua oração, pedindo que Deus viesse à Terra, equivale ao “Quis ut Deus?” do Arcanjo.

É Ela que se levanta contra esse estado de coisas, é só Ela que tem a oração bastante poderosa para desferir um golpe que tudo transforma.

Então, a plenitude dos tempos que se encerram: Nosso Senhor Jesus Cristo nasce, e toda a humanidade é reconstruída, regenerada, elevada e santificada por Nossa Senhora.

As almas começam a se salvar em profusão, as portas do Céu abrem-se, o inferno é esmagado, a morte é destruída, a Igreja Católica floresce sobre toda a face da Terra. Tudo como produto da oração de Nossa Senhora.

Não é verdade que Nossa Senhora, também sob este aspecto, se apresenta a nós como um verdadeiro modelo?

Não devemos desejar em nossos dias a vitória de Nosso Senhor, como Maria Santíssima a desejou em sua época?

Nossa Senhora com o Menino Jesus.
Rottenbuch, Alemanha.
Não há uma analogia absoluta entre o ardor com que Ela desejou a instauração do reino de Cristo na Terra e o ardor com que o devemos desejar em nossos dias?

Não é verdade que, se a oração d'Ela foi necessária para a realização da Encarnação, é indispensável também para que consigamos em nossos dias a vitória de Jesus Cristo no mundo?

Quando nos esfalfamos na luta pela vitória de Jesus Cristo em nossos dias, lembramo-nos de rezar a Nossa Senhora?

Quando rezamos a Ela, lembramo-nos de pedir esta graça?

Não seria uma boa oração se, por exemplo, ao contemplarmos o mistério da Anunciação na primeira dezena do terço, tivéssemos em mente Nossa Senhora que pede a vinda do Salvador?

E muito apropriado seria pedirmos a Ela que Jesus Cristo novamente triunfe no mundo, e ainda contemplarmos a vinda do Salvador e a futura vitória da Igreja Católica.

Não temos aí uma boa aplicação desses Mistérios para a vida espiritual? Não é assim que ela deve ser vista, vivida e conduzida?

Isto não é muito mais sólido que um arrastado murmúrio piedoso?

É com essas verdades de Fé que se alimenta a piedade. Com verdades destas há nutrimento em quantidade para a vida espiritual.

Contemplemos Nossa Senhora apressando, com Sua oração, a vinda do Messias. Não é verdade que Nosso Senhor vem a nós também no momento da Comunhão?

Não é verdade que podemos e devemos pedir a Ela, quando nos preparamos para recebê-Lo, algo dos sentimentos com que Ela O recebeu quando Ele se encarnou?

Se desejamos conseguir para alguém a graça da comunhão diária, não será útil pedir a Nossa Senhora que consiga para aquela alma a vinda quotidiana de Nosso Senhor, lembrando-A da eficácia da prece com que obteve a vinda de Jesus Cristo para o mundo?

A participação de Nossa Senhora na fecundidade do Padre Eterno e nossa vida espiritual

Consideremos a participação de Nossa Senhora na fecundidade do Padre Eterno para gerar membros do Corpo Místico de Cristo.

Mãe de Deus com os anjos. Pere Serra (1357 - 1406).
Mãe de Deus com os anjos. Pere Serra (1357 - 1406).
Todo fiel é um membro deste Corpo Místico. Quando passamos junto ao batistério, devemos nos lembrar de fazer uma oração rogando à Santíssima Virgem que Ela nos leve, até o momento da morte, na perseverança à graça que então recebemos, e que nos confirme nessa graça a vida inteira.

Junto a essa mesma pia batismal que nos viu entrar para o seio da Igreja Católica, lugar onde nascemos para a vida sobrenatural e onde, graças a uma prece de Nossa Senhora e à fecundidade de Deus Nosso Senhor, fomos gerados membros do Corpo Místico de Cristo, do qual Nossa Senhora é Mãe verdadeira.

Lembremo-nos de que fomos gerados para a vida da graça por Nossa Senhora, com a participação da própria fecundidade do Padre Eterno; e de que recebemos essa vida por meio d'Ela, de modo inteiramente gratuito, porque sem as orações e sem a participação d'Ela não a teríamos obtido.

Tudo isto nos permite, pois, pedir-Lhe que nos mantenha nessa graça, e que a cumule ainda com a virtude do senso católico – coroação dessa união extremamente íntima com Cristo – que recebemos pelo ministério d'Ela.

A piedade deve consistir em formar disposições de espírito que tenham base nessas verdades ensinadas pela Igreja e pela Teologia, e não em meros sentimentos.

Verdades como essas é que produzem uma devoção a Nossa Senhora muito boa, muito séria e muito sólida. Assim é que se constrói a verdadeira devoção a Nossa Senhora, e que se alicerça a verdadeira vida espiritual.





A cooperação de Nossa Senhora com Deus Filho



Nossa Senhora do Bom Conselho, Genazzano, Itália.
Nossa Senhora do Bom Conselho, Genazzano, Itália.
Nosso Senhor, formado no seio virginal de Maria Santíssima – Em primeiro lugar, devemos considerar a Encarnação do Filho em Nossa Senhora.

Há um livro do Padre J. M. (que não se pode recomendar a qualquer pessoa) em que ele estuda o processo da maternidade e da vida de Nosso Senhor em Nossa Senhora: como Ela, pelo processo da maternidade, foi gradualmente fornecendo-Lhe a sua carne e o seu sangue; como foi sendo formado, dentro de seu seio virginal, o corpo de Nosso Senhor, unido à divindade pela união hipostática.

A participação d'Ela no mistério da Encarnação é imensa. Considerando que o corpo de Nosso Senhor, Sua carne e Seu sangue, são carne da carne e sangue do sangue de Nossa Senhora, não se pode imaginar maior intimidade com Deus.

O papel de Nossa Senhora nesse mistério foi tal, que Deus quis que Ela antes desse o Seu consentimento, para depois dar a Sua Carne, o Seu Sangue e, portanto, algo de seu próprio Ser.

Como diz São Luís Grignion, foi vontade de Deus Padre que Nosso Senhor ficasse contido n'Ela como dentro de uma arca, de um tabernáculo, em que Ele operava maravilhas de graça só por Ela conhecidas.

E foi dentro d'Ela, como dentro de um santuário, que Nosso Senhor Jesus Cristo começou a dar glória ao Padre Eterno.

No próprio momento em que começou a existir a união hipostática, Deus recebeu de Nosso Senhor Jesus Cristo um ato perfeito de amor, o mais perfeito que jamais se deu na Terra.

Nossa Senhora do Ó 01, ou da Expectação, Évora.
Nossa Senhora do Ó, ou da Expectação, Évora.
Ninguém jamais prestou um ato de amor tão perfeito a Deus quanto a humanidade santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo.

São Luís Grignion mostra ainda como Jesus Cristo, que era Senhor onipotente, contido dentro de Nossa Senhora, deixou-Se transportar para onde Ela o quis, não só pelas montanhas da Judéia para visitar Santa Isabel, como por todos os lugares pelos quais Ela o quis.

A seguir, ele desenvolve a tese de que Nossa Senhora foi incumbida de criar Nosso Senhor e de O governar em Sua infância.

Era uma infância em que Ele tinha para com Ela as mesmas relações de uma criança para com sua mãe. Pois seria falso imaginar que, na presença de outros, Nosso Senhor fazia o papel de criança, mas que, quando não havia ninguém, apresentava-se como Deus.

Ele estava junto a Nossa Senhora sempre como uma criança, e Ela sabia que Ele era Deus, e tratava aquela criança como quem trata a um Deus.

Depois Nosso Senhor cresceu, passando trinta anos de Sua vida junto d'Ela, e consagrando aos homens somente três. Por fim, Ela O levou até o alto da cruz, e do alto da cruz ofereceu-O a Deus.

São Luís Grignion resume o papel de Nossa Senhora na Redenção: Ela gerou a vítima, Ela criou a vítima, Ela acariciou a vítima, Ela conduziu a vítima ao altar do sacrifício, e Ela mesma imolou a vítima.

Porque verdadeiramente Nosso Senhor morreu com o consentimento de Nossa Senhora. Ela quis que Ele sofresse tudo o que sofreu, e Ela quis que Ele morresse da maneira como morreu.

Ela consentiu naquela morte, estava de acordo. Ela queria que a morte de Seu Filho fosse daquela forma.

O papel d'Ela na Encarnação e na Redenção do gênero humano é um papel imenso; é um papel como maior não poderia ser.





Devoção a Nossa Senhora e apostolado



Maria com o Menino (Maria Hilf) Blumengirlande, Alemanha.
Maria com o Menino
Blumengirlande, Alemanha.
Há aplicações maravilhosas para nossa vida espiritual, a tirar destas considerações: Nosso Senhor vivendo trinta anos sob a dependência de Nossa Senhora.

Em nossa vida de piedade, por exemplo, que importância damos, respectivamente, à nossa união com Nossa Senhora e ao nosso apostolado?

Temos a impressão de que nosso apostolado é muito mais importante que a nossa união com Nossa Senhora. E isso de tal modo que temos, de um lado, nosso quarto de hora de oração a Ela, e depois nosso “enorme” apostolado.

Nosso Senhor nos dá o exemplo do contrário. Tempo dado à união com Nossa Senhora: trinta anos; ao apostolado: três.

Podemos bem compreender o que representa de homenagem – homenagem de um Deus, a palavra parece até absurda! – e de glória para Ela o Verbo Encarnado vir ao mundo e passar trinta anos junto d'Ela, dedicando apenas três à realização de Sua missão.

Podemos bem compreender o que significa a graça de estar junto de Maria Santíssima.

Assim sendo, quando vamos fazer uma visita a Nossa Senhora numa igreja, podemos nos unir a esses sentimentos de Nosso Senhor.

Convém que interrompamos com frequência nossas atividades, e entremos numa igreja para fazer uma visita a Maria com esta intenção: imitar a Nosso Senhor, que não se apressou em iniciar desde logo Sua vida pública, mas consagrou trinta anos a estar junto de Nossa Senhora.

Vou seguir Seu exemplo; por isso peço-Lhe que, dada a minha impossibilidade de agradar como devo a Nossa Senhora, que Ele A agrade por mim neste momento.

Nossa Senhora a Branca León, Espanha.
Nossa Senhora a Branca León, Espanha.
Quando me coloco diante do tabernáculo, devo pedir a Nosso Senhor a graça de que, em meu nome, Ele trate Nossa Senhora como eu gostaria de o fazer, embora eu seja incapaz.

Eis uma boa visita ao Santíssimo Sacramento e a Nossa Senhora. Com isto se constrói uma vida espiritual digna desse nome.

Mas é preciso que tenhamos em mente todas essas ideias, esses princípios, que eles estejam sempre presentes, para que possam ser utilizados quando as ocasiões se apresentarem.

Pelo acima exposto, vemos como seria tolo dizer que há secura ou geometrismo na piedade, por parte de quem assim procede. O que aí não se pode desejar é o vácuo, é a basófia.

Pois o que recomendamos não é secura nem geometrismo, mas coerência: a inteligência ilumina, a vontade quer, e a sensibilidade acompanha o preito de amor da vontade.

E se acaso a sensibilidade não acompanhar, não terá maior importância, pois o ato de amor estará feito. O amor reside na vontade.

Não se trata, portanto, de experimentar uma espécie de consolação sensível, de sentir o trêmulo da comoção, para só então rezar. Trata-se, sim, de ter convicção e resolução.

A Fé nos ensina que Nossa Senhora é imensamente bondosa, e por isso vamos a Ela com confiança. É uma consideração racional, que não nasceu da sensibilidade.

Essa atitude racional na oração, a construção de uma vida de piedade toda ela alicerçada sobre convicções recebidas da Fé, que a razão manipula para a vida espiritual, isso sim é verdadeiramente a seriedade na vida de piedade.

E não apenas para produzir uma faísca passageira de emoção mariana; o que desejamos é produzir convicções profundas e construir uma estrutura de espírito útil à vida espiritual.





A intimidade entre Nosso Senhor e Nossa Senhora aplicada à nossa vida espiritual



Glorificação da Ssma. Virgem, Geertgen Tot Sin Jans&nbsp; (1460 — 1490).<br />Museu Boijmans Van Beuningen, Rotterdam.
Glorificação da  Virgem, Geertgen Tot Sin Jans  (1460 — 1490).
Museu Boijmans Van Beuningen, Rotterdam.
São Luís Grignion lembra, entre outras coisas, que Nosso Senhor, no período de Sua gestação, enclausurou-se dentro do ventre puríssimo de Nossa Senhora, e que aí encontrou para Si um tabernáculo perfeito.

Para compreendermos bem o que isto significa, é interessante apelarmos para certos conceitos subjacentes à seção “Ambientes, Costumes, Civilizações”, de “Catolicismo”.

Estando no ventre de Nossa Senhora no período de Sua gestação, Nosso Senhor aí encontrou todo o necessário para suas delícias espirituais.

Havia ali um ambiente, uma atmosfera que Lhe era perfeita, graças às virtudes excelsas de Maria Santíssima. Durante esse período, Nosso Senhor teve com Ela uma união verdadeiramente incomparável.

Já consideramos o fato de que, nesse período, é Nossa Senhora que vai fornecendo sua própria carne e seu próprio sangue para a formação do corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Havia uma atividade em extremo íntima entre Ele e Ela, sendo preciso notar que Nosso Senhor teve o uso da razão desde o primeiro instante do Seu ser.

Ele, portanto, vivia em Nossa Senhora dispondo já completamente de Sua inteligência. Podemos imaginar a intimidade entre eles, o alto grau de cada ato de amor?

A cada colaboração que Ela prestava para a formação de Seu corpo, correspondia da parte d'Ele uma série de graças a Ela concedidas.

Nossa Senhora Mãe de Deus, ou 'Oranta'. Moscou, Galeria Tretjakov.
Nossa Senhora Mãe de Deus, ou 'Oranta'.
Moscou, Galeria Tretjakov.
Durante a gestação de Nosso Senhor havia, portanto, entre Ele e Sua Mãe, uma união verdadeiramente inexprimível e de uma sublimidade incomparável.

Em que sentido a consideração dessa união nos pode ser benéfica? O homem, na Igreja Católica, encontra-se diante de um firmamento de verdades.

Assim como, colocados diante do firmamento físico, contemplamos inúmeras maravilhas que enriquecem a nossa alma, assim também, no firmamento de verdades da Igreja Católica, poucas maravilhas podemos contemplar tão grandes quanto a intimidade de uma alma inteiramente humana – como era a de Nossa Senhora – com Nosso Senhor Jesus Cristo, durante o tempo da Sua gestação.

Essa união dá-nos uma ideia da intimidade que também nós podemos ter com Nosso Senhor, através da nossa santificação. Faz-nos compreender um pouco o que é a vida da graça, e dá-nos a apetência de maior união com Jesus Cristo.

Estas considerações não devem ficar no vácuo. Na vida espiritual, devemos ter propriamente apetência destes dons sobrenaturais, devemos desejar a união com Deus e os bens eternos.

O que caracteriza o católico, diferenciando-o do não católico, é que para o católico o desejo destes bens sobrenaturais e eternos é a dominante na vida; sua felicidade deve nisto consistir, e não na concupiscência dos bens terrenos.

E é nesta atmosfera que podemos imaginar o que significava a intimidade de Nosso Senhor com Nossa Senhora durante o período da gestação.

São João Batista, protótipo do devoto de Nossa Senhora – São Luís Grignion lembra-nos ainda outra importante passagem do Evangelho: Nossa Senhora praticando seu primeiro milagre da graça em São João Batista.

É algo, para nós, de muita significação. Conta o Evangelho que, dirigindo Nossa Senhora a palavra a Santa Isabel, São João Batista estremeceu de gozo em seu ventre, a tal ponto que ela o disse a Nossa Senhora.

Como homem predestinado que era, o Precursor estremeceu de gozo ao ouvir a voz da Santíssima Virgem.

Se considerarmos quem foi São João Batista, e quais os traços característicos de sua alma, compreenderemos o efeito que a voz de Nossa Senhora operou nele.

Grande asceta, ele foi por excelência o homem da pureza, dando-nos a ideia de possuir – o que é uma graça de Nossa Senhora – um domínio extremo sobre si mesmo.

Em segundo lugar, São João Batista é o homem que leva o desassombro e o espírito de combatividade ao último ponto, também por graça de Nossa Senhora.

São João Batista, profeta e mártir,
protótipo de devoto de Nossa Senhora.
Cartuxa de Champmol
Por fim, São João Batista é o mártir que se deixa decapitar, para manter-se fiel à sua pregação – ainda uma graça de Nossa Senhora.

São João Batista é, portanto, o protótipo do devoto de Nossa Senhora, com todas as suas características.

Quando rezamos a São João Batista, não lhe devemos pedir graças vagas, mas pedir que também nós possamos, quando ouvirmos Nossa Senhora nos falar pela voz da graça, “estremecer” e imitar as virtudes que ele praticou.

De outro lado, quando rezamos pela conversão de alguém, nada melhor podemos fazer do que pedir a Nossa Senhora que fale a esta pessoa palavras riquíssimas em graças, analogamente ao que fez com São João Batista.

Devemos nos lembrar de que a conversão ou o afervoramento de alguém não é o produto exclusivo de raciocínios que lhe possamos apresentar.

Dizer, por exemplo, que “dei um argumento poderoso e converti tal pessoa” é uma bazófia. “Dei um argumento poderoso e Deus o fecundou com Sua graça, de tal maneira que a pessoa se converteu” – isto, sim, se pode dizer.

A conversão é produto da graça de Deus. Nosso argumento nada mais é que mero veículo ou ocasião da graça, e é de fato a graça que opera.

Assim sendo, devemos pedir que em nossa voz jamais entrem acentos humanos, mas que seja apenas a voz de Nossa Senhora, a voz da graça de Deus.

As palavras de Nossa Senhora formando um justo, fazendo-o estremecer no ventre materno, devem ser um incentivo para confiarmos n'Ela para o êxito de nosso apostolado.





A confiança total em Nossa Senhora



Madonna dei raccomandati, catedral de Orvieto, capela do Corporal. Lippo Memmi (1291 — 1356).
Madonna dei raccomandati, catedral de Orvieto, capela do Corporal.
Lippo Memmi (1291 — 1356).

As bodas de Canaã


Como o primeiro milagre sobre a natureza, conseguido por Nossa Senhora nas bodas de Canaã, já tem sido muito tratado, não é necessário nos determos nele. Há contudo um aspecto que convém ressaltar.

O Evangelho recomenda que o verdadeiro fiel tenha uma Fé que transporte montanhas. É desta Fé que Nossa Senhora nos dá aí exemplo.

Colocada num momento em que Nosso Senhor deveria fazer um milagre, não tem dúvida quanto a Seu poder nem quanto ao fato de que Ele atenderá à sua oração.

Ela se limita simplesmente a dizer àqueles servidores: “Fazei tudo o que Ele vos disser” (Jo., II, 5). Ele ordena, ato contínuo, e o milagre se opera. Nossa Senhora nos dá, pois, exemplo dessa Fé que transporta montanhas, a Fé através da qual se operam as verdadeiras maravilhas.

Por que vemos hoje tão poucos milagres? Na Idade Média, por exemplo, quantas manifestações do sobrenatural! Hoje, quão poucas são as que podemos contemplar!

Por que razão havia antigamente quem enfrentasse potentados, filósofos e reis ímpios, dirigindo-lhes a palavra e operando suas conversões? São hoje – dir-se-ia – coisas impossíveis.

Víamos também pugilos de católicos, de cruzados, que entravam em batalha contra milhares de inimigos da Igreja e destroçavam a todos, porque lhes aparecia Nossa Senhora e lhes dava a vitória. Ou aparecia Nosso Senhor e dispersava os adversários.

Por que estas coisas quase não mais acontecem? É porque não se imita a Nossa Senhora, modelo da fé que transporta montanhas. O homem não tem a convicção absoluta de que, de fato, Deus está presente e vai ajudá-lo.

Não tem a convicção de que, se pedir, Deus o atenderá efetivamente. Deus é para ele quase um ente de razão, perdido num céu muito alto, não tendo com ele nenhum contato, não intervindo, quase não se interessando por ele.

As verdades da Fé a respeito da Providência Divina, da Sua intervenção na vida quotidiana e na vida da Igreja, são verdades que se admitem, sim, mas não com espírito de Fé bastante para se ter, face às dificuldades, a certeza de que Deus intervirá no momento preciso.

Dessas virtudes de Nossa Senhora, o que mais devemos guardar é que, se ao longo de nossa vida de apostolado nos encontrarmos em situações de apuro tal que se faça necessário um milagre de primeira grandeza, devemos esperar esse milagre; devemos nele confiar, como Ela confiou diante do apuro daqueles esposos, que a água seria transformada em vinho. É desta ordem a confiança que devemos ter em Nossa Senhora.

Batalha de Lepanto, 7 de outubro de 1571, em que os inimigos da Igreja, muito mais numerosos, foram derrotados, graças à milagrosa intervenção de Nossa Senhora. Mosaico na igreja de Fourvières, Lyon.
Batalha de Lepanto, 7 de outubro de 1571:os turcos muito numerosos,
foram derrotados pela milagrosa intervenção de Nossa Senhora.
Mosaico na igreja de Fourvières, Lyon.

A confiança total em Nossa Senhora


Insisto neste ponto por causa de uma nota característica de nossa atuação: é a desproporção flagrante, cruel, entre o que queremos fazer e os meios de que dispomos.

Nosso objetivo é, pura e simplesmente, a construção de uma nova civilização católica, mas com tudo quanto isto significa, ou seja, a restauração do reinado de Jesus Cristo no mundo, de acordo com a promessa feita por Nossa Senhora em Fátima.

Nossos meios, entretanto, são tão ridiculamente insuficientes, que se não contássemos com o sobrenatural, seria o caso de duvidarmos de nossa sanidade mental.

Quando aqui nos reunimos e nos entreolhamos, somos tentados a achar que constituímos um grupo já numeroso, dezoito pessoas já nos parece um grupo numeroso.

Por aí podemos avaliar qual a nossa fraqueza, do ponto de vista humano. É como um paralítico que quisesse transportar o Pão de Açúcar com o polegar, e que um dia exclamasse:

“Hoje consegui mexer-me na cama! Portanto estou a caminho de levantar-me, e quando me levantar estarei a caminho de transportar o Pão de Açúcar”.

A desproporção de forças é verdadeiramente chocante.

Por isso há momentos em que vem o desânimo. Há momentos em que tudo parece remoto, e há sobretudo ocasiões em que, após pressentirmos que muitas coisas boas estão por acontecer, ficamos afinal decepcionados, como se tivéssemos uma série de bilhetes de loteria em branco na mão.

É como numa viagem de automóvel: ao lado de momentos agradáveis, de conversa animada, há outros em que a estrada parece sem fim, e temos a impressão de estarmos andando há vários dias, de ainda faltar outro tanto, e de que a viagem deverá prolongar-se indefinidamente.

A vida de apostolado é assim. Há momentos em que se está animado. Mas outros há em que tudo parece ir mal, lento e emperrado, e não conseguimos remover os obstáculos.

Pois bem, esta é a fase áurea. Se o Cardeal Mindszenty pudesse viver uma vida de apostolado como a que descrevi, ele presumivelmente a acharia uma maravilha.

Passando-se anos e anos nesta vida de trabalhos, tem-se às vezes a impressão de que se andou muito; outras vezes, de que nada se andou, ou até de que se andou para trás, o que é mais aflitivo.

Nestas ocasiões difíceis, e sobretudo nas de apuro e dificuldades, em que nada parece ir adiante, devemos nos lembrar de que Nossa Senhora conseguiu de Deus o milagre de transformar a água em vinho.

Nossa Senhora ouve São Bernardo. Mosteiro de Heiligkreuztal, Baden-Württemberg, Alemanha.
Nossa Senhora ouve São Bernardo.
Mosteiro de Heiligkreuztal, Baden-Württemberg, Alemanha.
Quem sabe todos esses nossos esforços irão, de repente, produzir um resultado inesperado, devido às orações de Maria Santíssima?

Às vezes os fatos mais imprevisíveis são os que produzem resultados de apostolado. Do que depende ele, então? De se ter perseverança, rezar e fazer tudo em espírito de oração até o fim, até a última possibilidade, certos de que o que tentamos fazer quando tudo parecia perdido, é o que dará o resultado excepcional, acima mesmo do esperado.

Um ato de apostolado que repercute depois de dezenove séculos – Convém lembrar a recente descoberta de um arquivo dos essênios (grupo judaico que viveu no século imediatamente anterior ao início da era cristã), feita numa caverna nas proximidades do Mar Morto.

Segundo consta, seus membros seriam muito amigos de Nosso Senhor, de coração reto, e viviam em luta contra os fariseus de Jerusalém.

Ao que parece, devem ter passado por alguma tremenda provação, ao fim da qual a única coisa que puderam fazer foi tomar todos os seus documentos, colocá-los em vasos de barro, fechá-los cuidadosamente e enterrá-los numa caverna. Depois, desapareceram na História.

Mais de 1.900 anos se passaram depois deste último ato de apostolado do último essênio: o enterro do arquivo na gruta, onde ninguém mais deveria entrar.

Ao cabo desse tempo, contudo, pastores entraram na gruta, encontraram o arquivo e o venderam ao governo americano, que o divulga profusamente. De acordo com notícias de jornais, há nele coisas muito curiosas.

Além de trechos de Isaías, que provam ser canônico todo livro que a Igreja considera como tal, porque coincide perfeitamente com os textos encontrados, haveria muito material elucidativo a respeito da Bíblia, material este que estaria auxiliando enormemente a exegese católica.

Aplicando esse exemplo a nós, podemos considerar que o último essênio que guardou o arquivo era, possivelmente, um homem desanimado.

Aquele grupo parecia estar condenado ao desaparecimento, e se ele chegou ao ponto de guardar o arquivo, foi certamente para evitar uma profanação.

Esse essênio dificilmente poderia imaginar que seu último ato de apostolado, seu último ato de amor a uma causa que parecia morta, 1.900 anos mais tarde iria dar enorme glória a Deus.

Em todas as ocasiões, pois, em que tudo parecer perdido, deve-se sempre fazer mais alguma coisa, porque o que se faz com confiança em Nossa Senhora é o que verdadeiramente tem mérito e o que produz resultado.









A cooperação de Nossa Senhora com o Espírito Santo



Mostra-nos São Luís Grignion que a fecundidade do Padre dá origem, por uma geração eterna, ao Filho; e do amor do Padre e do Filho procede outra pessoa divina, o Espírito Santo.

Gerado o Divino Espírito Santo, essa fecundidade parecia extinguir-se. Ela vai, entretanto, manifestar-se novamente em Nossa Senhora. É pousando sobre Maria Santíssima, é obumbrando-A, que o Espírito Santo gera a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Ela é, pois, verdadeiramente a esposa do Espírito Santo, não no sentido alegórico, mas no sentido estrito da palavra, porque Ele gerou um filho n'Ela.

Nosso Senhor é verdadeiramente filho d'Ela, e Ela é verdadeiramente esposa do Espírito Santo. Assim, a participação d'Ela neste acontecimento é de uma sublimidade e de uma intimidade tais com Deus, que está fora de qualquer paralelo.

Como esposa do Espírito Santo, Nossa Senhora tem ainda um título especial para a nossa piedade, pois tudo quanto diz respeito à Fé católica, à ortodoxia e à manutenção da fidelidade à Igreja, deve ser considerado como fruto e obra do Espírito Santo em nós.

E, enquanto esposa do Espírito Santo, Nossa Senhora tem sobre Ele aquele poder que, no Antigo Testamento, tinha Esther sobre o rei Assuero, por ser sua esposa.

Assuero, conta a Sagrada Escritura, havia decretado a morte de todos os judeus de seu reino; e Esther, pelas simples súplicas que lhe apresentou, conseguiu que a política dele fosse inteiramente mudada, e os judeus poupados.

Esta ascendência, Nossa Senhora a tem sobre o Divino Espírito Santo, podendo conseguir-nos um tal grau de união com Ele, uma tal abundância de graças das quais Ele é a fonte, que, sem a Sua intercessão, ser-nos-ia inteiramente impossível conseguir.

A devoção ao Espírito Santo é assunto pouco conhecido e pouco tratado. Fala-se vagamente do Espírito Santo, e poucos são os que se lembram dos pecados que contra Ele podem ser cometidos.

Se tivéssemos ideia de nossos deveres para com o Espírito Santo, e de como eles se ligam diretamente à nossa salvação, teríamos outro estado de espírito a respeito.

Falando grosso modo, os pecados contra o Espírito Santo que se conhecem são apenas os gravíssimos: negar a verdade conhecida como tal e desesperar-se da salvação.

Espírito Santo. Bordado pelas dominicanas de Stone, Staffordshire, Inglaterra.
Espírito Santo. Bordado pelas dominicanas de Stone,
Staffordshire, Inglaterra.
Mas há numerosas formas miúdas de pecados contra Ele – pecados que quase todos cometem – que, sem constituírem diretamente pecados gravíssimos, fazem com que contrariemos a obra do Espírito Santo em nós. Quantas defecções e estagnações espirituais não têm aí suas raízes!

Negar a verdade conhecida como tal – Analisemos mais detidamente o pecado de negar a verdade conhecida como tal. Nós, católicos, não a negamos porque, com o favor de Nossa Senhora, somos fiéis à Igreja Católica.

Mas cada vez que, por amor a um preconceito, a um capricho, a uma extravagância da inteligência, não aderimos a uma verdade da Santa Igreja, nós ofendemos o Divino Espírito Santo.

Cada vez que queremos ter uma opinião particular, só pelo gosto de ser particular, não nos preocupando em pensar como a Igreja pensa, estamos contrariando a obra do Espírito Santo.

Cada vez que, por mania de conservarmos íntegra a nossa “individualidade”, aberramos do espírito da Igreja, estamos contrariando a obra do Espírito Santo em nossas almas, a qual visa conformar-nos inteiramente à Igreja Católica.

Nessas ocasiões, congelamos o progresso de nosso senso católico e, às vezes, até acabamos por ser um escolho para o apostolado da Igreja e para o desenvolvimento dos interesses católicos.

Por que? Por falta de correspondência às graças do Espírito Santo.

Desesperação da salvação – Analisemos agora o pecado que consiste em desesperar-se da salvação. Ele é cometido de forma plena quando uma pessoa renuncia expressamente a se salvar.

Mas há outro modo, muito frequente até, de se cair em grau menor nesse pecado. É quando nos deixamos influenciar pelo seguinte estado de espírito:

“Tenho tal defeito que jamais conseguirei vencer; aliás, é um defeito pequeno (por exemplo, o ter mau gênio), de maneira que não vou combatê-lo”.

É um pecado contra o Espírito Santo. Porque, de fato, Ele nos dá todas as graças necessárias para que possamos vencer todos os nossos defeitos; se desesperarmos de corrigir algum, estaremos, em ponto pequeno, fazendo o mesmo que se desesperássemos de nossa salvação.

A graça de Deus nos dá forças para nos corrigirmos de todos os nossos defeitos; se temos um defeito de que não nos corrigimos, somos indiscutivelmente responsáveis por isso.

Nossa Senhora dá o terço a São Domingos de Gusmão, Alemanha, Aldekerk
Nossa Senhora dá o terço a São Domingos de Gusmão,
Alemanha, Aldekerk
Outros, para acobertar suas falhas, dizem: “Para uma pessoa com mentalidade muito especial, determinada coisa pode não ser um defeito, mas um modo de ser. Em mim, portanto, isto não é defeito”.

Nada de mais falso! Quando o modo de ser não está de acordo com a razão, e não se conforma à ordem natural das coisas, é um modo de ser errado, e portanto um defeito.

Uma pessoa que nasceu com um desvio na espinha poderia dizer: “Aquele outro, que tinha a espinha direita e depois a entortou, é um defeituoso. Mas em mim, que nasci assim, isto não é um defeito”.

Que diríamos dessa pessoa? Salta à vista que é defeito ter nascido com a espinha torta, e que se deve procurar endireitá-la.

Da mesma forma, um nervoso poderia dizer: “Em mim, ser nervoso é um `tique', uma manifestação nervosa, um cacoete até interessante; os outros que suportem um pouco. Que culpa tenho de ser nervoso?”

Ora, raciocinando-se desse jeito, poder-se-ia perguntar que culpa tem o dono de um carro, por ele disparar ladeira a baixo. Entretanto, se o carro não for freado, dispara mesmo, abalroa os outros, e o dono será culpado por todas as pernas e braços quebrados que houver pelo caminho.

Não há culpa por se ter nascido com certos defeitos temperamentais, mas sem dúvida alguma há culpa por não se ter procurado corrigi-los.

O desespero de não se corrigir desses defeitos, de não conseguir retificar o que há de errado, é uma falta de correspondência à graça de Deus, e é, em ponto muito pequeno, um defeito na linha de desesperar da própria salvação.

De fato, se todos têm obrigação de ser conformes à razão, ninguém tem o direito de não o ser, e nisto estaria cometendo este pecado.

Como evitá-lo? Por meio da oração à Santíssima Virgem. Nossa Senhora, que é a Medianeira universal e necessária de todas as graças, e por meio de Quem todos os dons do Espírito Santo se conseguem, pode obter-nos, como Esposa do Espírito Santo, todas essas graças.

É enquanto Esposa do Divino Espírito Santo que devemos rezar a Ela.




Deus quer servir-se de Maria na santificação das almas


Nossa Senhora da Lapa, na igreja da Lapa, Arcos de Valdevez, norte de Portugal
Nossa Senhora da Lapa, na igreja da Lapa,
Arcos de Valdevez, norte de Portugal

Capítulo I. Segundo princípio


Vimos até aqui o que diz São Luís Grignion da cooperação de Nossa Senhora na Encarnação do Verbo.

Ele analisa as três qualidades d'Ela – Filha do Padre Eterno, Mãe do Filho de Deus e Esposa do Espírito Santo – e mostra quais as relações que, em face dessas três qualidades, Ela teve com a Santíssima Trindade na Encarnação do Verbo.

E conclui demonstrando que essas relações não foram tão-somente muito íntimas, profundamente íntimas, mas foram as mais íntimas das relações, como aliás é fácil conceber.

Pressupostos que demonstram a importância fundamental da ação de Nossa Senhora na salvação das almas

São Luís Grignion passa então a um segundo princípio, cuja demonstração pede três pressupostos:

a) Nossa Senhora teve uma participação imensamente íntima, sumamente íntima, na Encarnação do Verbo;

b) É verdade comum da doutrina católica, e geralmente aceita, que a ação de gerar o Redentor Nosso Senhor Jesus Cristo, e a de gerar as almas para a vida da graça, são duas ações que não podem ser consideradas separadamente.

A razão, segundo a doutrina católica, está em que Nossa Senhora, sendo Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, que é a cabeça do Corpo Místico, é também Mãe do Corpo Místico de Cristo, pois quem gera a cabeça gera todo o corpo. Sendo Mãe de Cristo, cabeça do Corpo Místico, Nossa Senhora é necessariamente a Mãe do Corpo Místico.

Não apenas num sentido figurado ou analógico, Nossa Senhora é Mãe da Igreja Católica. Ela o é no sentido próprio da palavra, e não somente por ter para conosco certas relações e certo sentimento de maternidade, mais ou menos por uma relação proporcionada, como um tio pode chamar a um sobrinho de “meu filho”.

Sendo Ela Mãe da Cabeça, Ela o é de todo o Corpo Místico de Cristo. Sendo Mãe da Cabeça, Ela o é de todos os membros.

Pode-se compreender isto, mesmo deixando de lado qualquer outra consideração. O Corpo Místico de Cristo nasceu da Redenção. Ora, tendo Nossa Senhora gerado o Redentor, compreende-se facilmente qual a íntima relação d'Ela com a Redenção, porque Ela é a geradora d'Aquele que é o próprio artífice da Redenção, d'Aquele que é o próprio Redentor.

A sua relação com a Redenção está, pois, dentro da linha da maternidade, o que Lhe atribui a maternidade sobre todos aqueles que foram gerados para a vida da graça.

c) Por outro lado, pela própria natureza das coisas, a conversão de uma pessoa equivale a ser gerado Nosso Senhor Jesus Cristo nela, em tornar-se ela membro do Corpo Místico de Cristo, um cristão.

Nestas condições, trabalhar pela extensão da obra da Redenção é trabalhar pelo nascimento de Jesus Cristo nas almas. A conversão de uma alma e a geração de Nosso Senhor Jesus Cristo são operações conexas.

Túmulo de São Luís Maria Grignion de Montfort,
Saint Laurent sur Sèvres, França.
Deus gerou Jesus Cristo em Nossa Senhora. Tendo Ela concebido por obra de Deus, sendo Ela a Mãe de Deus, esta maternidade é perene, porque as coisas que Deus faz são definitivas.

Tendo Ele, pois, dado a Ela esta qualidade, tendo Ele feito esta operação n'Ela e por meio d'Ela, Ele Se mantém nesta relação a título definitivo.

Portanto, a geração das almas pela graça é feita n'Ela e por meio d'Ela, posto que as obras de Deus são definitivas.

Compreenderemos isso melhor imaginando que, por absurdo, Deus degradasse Nossa Senhora, fazendo que uma obra dessa natureza se passasse fora d'Ela, apesar de estar Ela ligada com a maternidade.

Essa hipótese só seria possível se Ela deixasse de merecer. Nós sabemos, porém, que em sua vida terrena estava Ela confirmada em graça, e que jamais deixou de merecer essa qualidade; e agora, que está no Céu, Ela também não deixará de merecer a mesma qualidade. Portanto, esta relação está estabelecida a título definitivo.

Desses três pressupostos, tira São Luís Grignion uma conclusão: a ação de Nossa Senhora na salvação das almas é tão importante quanto o foi na Encarnação.

Assim como foi primordial o papel d'Ela na Encarnação do Verbo, assim também é de suma e essencial importância na salvação das almas.

Aplicação desse princípio às relações de Nossa Senhora com a Santíssima Trindade


Estabelecido esse conceito geral, São Luís Grignion faz aplicações às relações de Nossa Senhora com as três Pessoas da Santíssima Trindade. Diz ele:

a) Assim como há na ordem natural um pai e uma mãe, para a geração sobrenatural há necessidade de um pai, Deus, e de uma Mãe, Maria. Por isso não tem a Deus por Pai quem não tem Maria por Mãe.

O Padre Eterno quis, em Nossa Senhora, gerar para Si um filho, que é Nosso Senhor Jesus Cristo. E os novos filhos que tem, segundo a graça, Ele também quer gerá-los em Nossa Senhora.

Desta maneira, até à consumação dos séculos, os filhos de Deus serão gerados em Nossa Senhora. Assim como a geração natural supõe um pai e uma mãe – pois sem pai e mãe não pode haver geração – assim também há na geração sobrenatural um Pai, que é Deus, e uma Mãe, que é Maria Santíssima.

E São Luís Grignion tira daí uma aplicação muito importante: “Não tem Deus por Pai, quem não tiver Maria por Mãe” (tópico 30).

Esta a razão por que os hereges e os cismáticos não gostam de Nossa Senhora; não querem ter Nossa Senhora por Mãe, e por isso não têm a Deus por Pai.

É um sinal certo de se ter bom ou mau espírito o ter-se maior ou menor propensão à devoção a Maria Santíssima.

b) Assim como o Verbo quis formar-se em Nossa Senhora para Sua vida terrena, assim também quer fazê-lo para nascer em cada um de nós.

“O desejo de Deus Filho é formar-se e, por assim dizer, encarnar-se todos os dias, por meio de Sua Mãe, em Seus membros” (tópico 31).

Assim como Ele quis formar-Se e encarnar-Se em Nossa Senhora para Sua vida terrena, assim quer Ele formar-Se, encarnar-Se em Nossa Senhora para nascer em cada um de nós.

c) Sendo Maria esposa do Espírito Santo, somente produz Seu fruto, que é Nosso Senhor, nas almas onde Ele A encontra.

O Espírito Santo é realmente o esposo indissolúvel de Maria Santíssima. Dada a indissolubilidade deste vínculo, numa alma onde o Espírito Santo encontra a devoção a Nossa Senhora, Ele aí para, acorre e produz o Seu fruto, fazendo nascer Jesus Cristo.

Se, numa determinada alma, Ele não encontra Maria, não encontra a devoção a Ela, ali não produz o Seu fruto, que é Nosso Senhor.




Necessidade da devoção a Nossa Senhora para a nossa salvação


Madonna do Bessarione, Antoniazzo Romano, basílica dos Santos Apóstolos, Roma.
Madonna do Bessarione, Antoniazzo Romano,
basílica dos Santos Apóstolos, Roma.


Por essas considerações, compreende-se bem como, por disposição da Providência Divina, Nossa Senhora é verdadeiramente necessária para a salvação das almas.

A este título, esta necessidade torna a devoção a Ela completamente diferente da devoção aos santos. Não se pode dizer, por exemplo, que a devoção a São Francisco de Sales seja necessária para a salvação de nossa alma.

É, por certo, uma devoção muito conveniente, mas isso não quer dizer que não salvará sua alma quem não for seu devoto.

Com Maria Santíssima, contudo, não é assim. Quem não for Seu devoto não salvará a sua alma. E não a salvará por força do papel de Nossa Senhora na economia da graça e na produção dos filhos de Deus.

É importante e necessária uma perfeita compreensão disso, devendo estar de tal maneira sabido e assimilado, que passe a ser um desses conhecimentos comuns, que se manuseiem para a nossa devoção e se utilizem com facilidade para a vida espiritual.

Recapitulando


Para maior facilidade de compreensão, e tendo em vista a importância transcendental da matéria, repetiremos essas doutrinas em termos mais simples.

1 – Pela graça, tornamo-nos membros do Corpo Místico de Cristo – Sem a graça de Deus ninguém pode salvar-se. Portanto, a posse da graça é essencial para a nossa salvação.

Essa posse, por outro lado, é o que em teologia se chama o nascimento de Jesus Cristo em nós.

Aqueles que têm a graça tornam-se membros do Corpo Místico de Cristo, incorporam-se a Jesus Cristo e, de algum modo, pelo fato de terem a graça, Jesus Cristo nasce neles.

Vemos, pois, a conexão que existe entre o fato de tornarmo-nos cristãos, membros do Corpo Místico de Cristo, e a vida da graça.

2 – Sendo Nossa Senhora Mãe da cabeça do Corpo Místico, que é Cristo, tem que sê-lo também dos seus membros; e por causa das relações especiais que Ela teve com a Santíssima Trindade na Encarnação, sua aplicação e seu símile se dão na geração da vida espiritual em nós.

Para uma pessoa tornar-se cristã, membro do Corpo Místico de Cristo, é absolutamente indispensável a participação de Nossa Senhora, por uma necessidade que de si não é absoluta, mas que Deus instituiu.

Em termos mais simples: Absolutamente falando, a Providência poderia ter dispensado Maria Santíssima; mas, uma vez que dispôs o contrário, Nossa Senhora tornou-se para nós meio indispensável.

Sendo Mãe de Jesus Cristo, Ela o é de todo o Corpo Místico de Cristo, e sem a participação d'Ela não teria sido possível sermos membros desse Corpo Místico.

3 – Como essa doutrina não é exclusivamente de São Luís Grignion, mas de toda a Igreja, negá-la é pecar contra a Fé.

Madonna della Misericordia, Sano di Pietro (1406–1481).
Madonna della Misericordia, Sano di Pietro (1406–1481).
É mister esclarecer que não se pode dizer que essas idéias aqui desenvolvidas sejam “doutrina de São Luís Grignion”.

Talvez, já no tempo dele, fossem elas ensinadas por toda a Igreja. Hoje certamente o é. Em conseqüência, toda essa doutrina não poderia ser hoje negada, sem que se caísse em pecado contra a Fé, pois é verdade de Fé.

Se tudo isso é verdade, tanto mais unidos estaremos a Deus quanto o estivermos em relação a Nossa Senhora. Que aplicações tiramos daí para a nossa vida espiritual?

Se tudo isto que a Igreja ensina é verdade – já não podemos aqui dizer que é São Luís Grignion apenas quem o ensina – torna-se bem claro que a ação de Deus em nós, em nossa santificação, em nossa própria salvação, tornar-se-á tanto mais garantida quanto mais estivermos unidos a Nossa Senhora.

Se sabemos que o Padre Eterno quer multiplicar Seus filhos por todos os séculos em Maria Santíssima, é tanto mais certo que seremos filhos d'Ele quanto mais Nossa Senhora estiver dentro de nós.

Se é certo que Nosso Senhor Jesus Cristo Se multiplica e quer Se multiplicar nos cristãos, fazendo que eles nasçam em Nossa Senhora como Ele mesmo nasceu, tanto mais teremos certeza de que Cristo Se forma em nós e de que nos santificamos e progredimos na vida espiritual, quanto mais Nossa Senhora estiver presente em nós, pela ação da graça.

Maria é esposa indissolúvel do Espírito Santo. Vendo Nossa Senhora em uma alma, ou seja, vendo a devoção a Ela, Ele acode imediatamente e nela produz Seus frutos da graça.

Portanto, quanto mais intensa for em nós a devoção a Maria Santíssima, tanto mais garantia teremos de que o Espírito Santo virá à nossa alma, e nos ilustrará e fecundará com Sua ação.

4 – Por isso devemos fazer um exame de consciência, para medir o grau de santificação e união com Deus em que estamos, pelo grau que temos de devoção a Nossa Senhora

Se isto é assim, devemos ter a maior devoção a Nossa Senhora que se possa conceber. E se ela é assim necessária, tanto mais longe estaremos de nos santificar e de nos salvar, quanto mais distantes estivermos desta máxima devoção a Maria.

Podemos, pois, fazer um exame de consciência e perguntarmo-nos em que grau estamos da devoção a Nossa Senhora.

Teremos, por essa forma, um verdadeiro termômetro do grau de santificação e de união com Deus em que nos achamos. Tal é a estreita relação existente entre a devoção a Nossa Senhora, a santificação e a salvação.

5 – Essa devoção, ainda que não sensível, dará seus frutos

Mater Boni Remedii
Mater Boni Remedii
Há, nesta matéria, aspectos belíssimos. Nem todas as almas sentem um atrativo, por assim dizer espontâneo e natural, para a devoção a Nossa Senhora.

Uma freira contou-me certa vez que uma protestante convertida ao catolicismo dizia ter uma compreensão completa de todas as razões pelas quais, segundo a doutrina católica, uma alma deve ter devoção a Nossa Senhora. Mas essas razões, se bem que a persuadissem, não lhe tocavam a alma.

Então, por puro espírito de sujeição para com a Santa Igreja, ela fazia tudo quanto esta lhe indicava para com Nossa Senhora, mas sem que aquelas práticas tivessem maior ressonância em seu interior.

Passou mais ou menos dez anos praticando dessa forma um culto a Nossa Senhora que, na aparência, se poderia dizer fabricado, sintético, artificial, intencional.

Ao cabo desses dez anos, tornou-se uma das pessoas mais devotas de Nossa Senhora que essa freira conhecera. A graça fecundara aquela admirável docilidade para com a Igreja infalível.

A dificuldade que ela sentia, em ter uma devoção sensível para com a Santíssima Virgem, era uma espécie de barreira que Nossa Senhora queria que ela vencesse, a fim de uni-la a Si ainda mais particularmente do que outras almas.

Não devemos, pois, desanimar quando não notamos em nós uma propensão especial para esta devoção. Desde que tenhamos suficiente espírito de fé para nos submetermos à doutrina católica, e para agirmos como nos indica a Santa Igreja, a devoção a Nossa Senhora, mesmo praticada nessas condições, produzirá em nós todos os seus frutos.

E esses frutos serão particularmente ricos se tivermos o propósito firme de desenvolver a devoção à Santíssima Virgem em cada um de nós e em torno de nós, tanto quanto a doutrina católica o permita, e até aos seus mais ousados extremos.

Se a expressão não fosse um tanto incorreta, ousaríamos dizer: até aos seus últimos paroxismos. Eis um programa completo de vida espiritual.




Aplicações para o apostolado


Nossa Senhora do Círio de Nazaré, Belém, Pará. Imagem que saiu na procissão 2007.
Nossa Senhora do Círio de Nazaré, Belém, Pará.
Imagem que saiu na procissão 2007.

Que aplicações devemos tirar destas verdades, para o apostolado?

Se é real tudo o que até aqui se disse, o progresso da Igreja deve consistir sobretudo no desenvolvimento da devoção a Nossa Senhora entre os fiéis.

Quando, por exemplo, o “Catolicismo” insiste de todos os modos na devoção a Nossa Senhora, ele o faz por devoção; mas fá-lo também porque sabe que realmente, para a Igreja Católica, este é um ponto absolutamente fundamental.

Se há uma determinada região onde Nossa Senhora é pouco venerada, aí a fé e os costumes correm perigo. Se em outras Ela é muito venerada, estão postas as condições para que a fé e os costumes floresçam.

Não se pode dizer que florescerão automaticamente, porque na vida espiritual não existe automatismo. Não é lícito dizer que, sendo devotas de Nossa Senhora, as almas são automaticamente boas.

Mas pode-se afirmar que ficam postas as condições para que as almas, nessa região, sejam verdadeiramente católicas. Isto é certo, como já vimos, para cada alma.

E o que se diz de um homem diz-se de uma região, pois esta é constituída por homens.

Se é verdade que uma alma será tanto mais imune à heresia e à corrupção quanto mais for devota de Nossa Senhora, as cinquenta mil almas de uma região também o serão, quanto mais devotas d'Ela forem.

Por outro lado, o culto a Nossa Senhora é o que atrai de Deus as maiores bênçãos. Esta devoção, atraindo d'Ele as graças mais excelentes, é evidentemente capaz de promover a salvação de maior número de almas.

Descendo mais ao fundo da questão, vemos que, estando a conversão e a santificação das almas, segundo os altíssimos desígnios do próprio Deus, de tal maneira relacionadas com a devoção a Nossa Senhora, devemos pedir a Ela que trabalhe nesse sentido de nos unir mais a Si, pois a Sua intercessão e o Seu patrocínio são absolutamente necessários para a nossa salvação.

Se quisermos que alguém progrida e se santifique, não poderemos fazer coisa melhor do que pedir as graças de Nossa Senhora para ele. Se quisermos a conversão para alguém, melhor não poderemos fazer que pedi-la a Nossa Senhora.

Devemos pedir a Ela – criatura santíssima em que Deus Nosso Senhor é gerado – que produza o Seu fruto naquela alma, fazendo nascer nela Nosso Senhor Jesus Cristo.

A devoção a Nossa Senhora, bem entendida e bem praticada, é o elemento fundamental para a fecundidade do próprio apostolado.

Virgem de Chestohowa, padroeira da Polônia.
Virgem de Chestohowa, padroeira da Polônia.
O culto a Nossa Senhora não prejudica o culto a Deus. Antes, é um meio necessário para ele. É preciso esclarecer que o tempo empregado pelo homem em cultuar Nossa Senhora não representa uma diminuição do culto prestado a Deus.

Isso porque Deus dispôs as coisas de tal maneira que, enquanto estamos nesta Terra – para não considerarmos senão a vida terrena – nosso pensamento não pode, não consegue estar continuamente preso a Ele de modo direto, e deve estar necessariamente relacionado com outros seres.

E o mérito de nosso pensar consiste então em ver a Deus em outros seres, porque esta foi a ordem de coisas estabelecida por Ele.

Assim, é vontade de Deus a nosso respeito que estejamos cogitando, por exemplo, de assuntos de sociologia, política, finanças, economia, arte, e não é vontade d'Ele que nosso espírito esteja constantemente concentrado na preocupação exclusiva de Lhe prestar culto (pelo menos de modo direto).

Ora, se este é o princípio obviamente admitido, não é de espantar que Ele deseje que uma parte desse tempo recaia sobre Sua Mãe. Isto para não considerar senão este aspecto do assunto.

Mesmo do ponto de vista da intensidade dos afetos, a devoção a Nossa Senhora não prejudica o culto a Deus.

Num raio de sol que pousa sobre um certo objeto, se lhe interpusermos um corpo opaco, o raio ficará com sua marcha tolhida; colocando-se um corpo translúcido, o raio passará por ele, perdendo contudo a sua intensidade.

Mas se se colocar uma lente, ele se concentrará. Nossa Senhora não faz entre Deus e nós o papel de corpo opaco nem do translúcido, mas o da lente.

A devoção a Maria, em relação a Deus, é para nós o que na devoção ao Santíssimo Sacramento representa o cristal que se coloca no ostensório diante da Hóstia: todo olhar deve passar por ele, para se chegar a ver as Sagradas Espécies.

Ele não prejudica a visão; pelo contrário, necessariamente é preciso passar-se por ele (para tê-la de maneira mais nítida).

Nossa Senhora é como uma lente poderosa e pura, que concentra em nós as graças que vêm de Deus. São Luís Grignion nos explica muito bem o fundamento teológico disso, como veremos adiante.




Maria no mistério da Igreja. Primeira consequência: Maria é a rainha dos corações


Nossa Senhora do Rosário, México.
Nossa Senhora do Rosário, México.


Vimos como São Luís Grignion mostrou no início de seu “Tratado” o papel de Nossa Senhora na Encarnação do Verbo e na Redenção do gênero humano.

A partir desse papel, concluiu ele que, se na Encarnação do Verbo e na Redenção do gênero humano foi tão profundo o alcance da missão de Nossa Senhora, evidentemente deve sê-lo também na obra da salvação das almas.

Vimos então como ele analisou as relações de Nossa Senhora com Deus Padre, com Deus Filho e com Deus Espírito Santo na geração dos membros do Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo, que somos cada um de nós.

Dessas verdades tira ele uma conclusão quase óbvia: Nossa Senhora tem um grande poder sobre as almas.

Há uma verdade que, a bem dizer, é experimental dentro da Santa Igreja: quando uma associação religiosa vai mal, ou o andamento de uma iniciativa de apostolado está difícil, quando qualquer empreendimento santo não está despertando o interesse desejado nem criando raízes no povo, o meio que se tem para resolver as dificuldades, o caminho a seguir para tudo resolver, é colocar essas obras sob a égide de Nossa Senhora.

O mais insigne desses exemplos é a cruzada pregada contra os albigenses.

Como sabemos, eles viviam na região de Albi, no sul da França, e eram tão pertinazes que não havia meio de os dominar.

Nossa Senhora revelou então a São Domingos de Gusmão uma devoção a Ela, mediante a qual os hereges seriam subjugados.

E, de fato, depois de difundida a devoção ao Santo Rosário, a heresia dos albigenses, que era tremenda e estava profundamente radicada no solo francês, começou a ser debelada. Há ainda fatos menores, mas também muito sintomáticos.

Onde se encontra a Santíssima Virgem, tudo floresce. As Congregações Marianas tiveram um florescimento enorme no Brasil, devido precisamente ao culto a Nossa Senhora.

Toda a vida católica no Brasil foi florescentíssima no tempo em que não havia esse maldito combate à devoção a Nossa Senhora. É só minguar de qualquer forma a devoção a Ela, que imediatamente todas as coisas começam a decair.

São Domingos de Gusmão recebe o terço de Nossa Senhora. Igreja de Santa Sabina, Roma
São Domingos de Gusmão recebe o terço.
Igreja de Santa Sabina, Roma
A prova mais insigne do que digo foi o efeito letal que produziu o jansenismo na França, no século XVIII. Essa heresia, como sabemos, combate a devoção a Maria Santíssima.

Foi suficiente que o jansenismo começasse a se lançar nesta sanha anti-marial diabólica, para que a vida espiritual deperecesse nas paróquias atingidas pela heresia.

As estatísticas, que já naquele tempo se faziam com regularidade, mostram o número assombroso de comunhões que decrescem, de batizados que escasseiam, de casamentos que decaem, e assim todos os demais índices de vida religiosa passam a exprimir um deperecimento.

Qual a razão? Nossa Senhora fora eliminada da vida religiosa.

Esta verdade se põe com a clareza de uma constatação de laboratório. A demonstração da ação de um corpo faz-se colocando-o em presença de outro, e passa-se então certo fenômeno; tirando-se o corpo, o fenômeno deixa de se produzir; sendo colocado de novo, volta a se repetir o fato.

Daí se deduz que aquele corpo é causa daquele fenômeno. Assim também com a devoção a Nossa Senhora: onde há devoção a Maria, tudo floresce; extinta essa devoção, tudo míngua; restaurada novamente, tudo volta a florescer.

A razão disso é teológica e profunda. São Luís Grignion mostra que, se Nossa Senhora tem uma grande influência na geração dos membros do Corpo Místico, Ela implicitamente tem grande poder sobre as almas, porque Ela não poderia obter a geração do Corpo Místico se não tivesse esse poder.

A devoção a Maria Santíssima age sobre as almas, e o faz de forma imensamente poderosa; por isso as conversões mais profundas, as mudanças de espírito mais surpreendentes, as graças espirituais mais assinaladas são produzidas por essa devoção.

Em conseqüência, Nossa Senhora deve ser chamada a Rainha dos Corações. É uma das mais belas invocações a Ela dirigidas.








Segunda consequência: Maria é necessária aos homens para chegarem ao seu último fim


Apocalipse: o dragão tenta inutilmente devorar a mulher. Ottheinrich-Bibel, Bayerische Staatsbibliothek, gm8010, Folio295r
Apocalipse: o dragão tenta inutilmente devorar a mulher.
Ottheinrich-Bibel, Bayerische Staatsbibliothek

São Luís Grignion tira a seguir outra conclusão, também óbvia: Nossa Senhora é necessária aos homens para chegarem ao seu último fim.

É coisa evidente, pois se Nossa Senhora é necessária para sermos gerados em Jesus Cristo, é necessária para chegarmos ao último fim, que se atinge quando somos gerados em Jesus Cristo.

Em seguida ele nos mostra que a devoção a Nossa Senhora é especialmente necessária para aqueles que querem atingir uma grande santidade.

É também óbvio. A santidade é uma graça insigne de Deus. Se Nossa Senhora é a medianeira de todas as graças, sem a devoção a Ela jamais se alcançará esse estado.

A devoção à Santíssima Virgem será especialmente necessária nesses últimos tempos


O propósito de São Luís Grignion ao escrever este “Tratado” não foi o de fazer uma obra como a de Mons. Henri Delassus, a respeito do passado, do presente e do futuro da civilização cristã.

Desta maneira, os elementos proféticos que se encontram na exposição de São Luís Grignion figuram mais ou menos acidentalmente.

Ele nos fala a respeito do fim do mundo e dos fatos que o antecederão, apenas na medida em que poderiam interessar à devoção mariana.

Mas como, além de saber em que medida essas coisas podem interessar à devoção mariana, interessamo-nos também em conhecer seu pensamento a respeito do fim do mundo, temos de colher, em pontos esparsos do Tratado, os elementos necessários para tal.

São Luís Grignion começa a tratar da questão no parágrafo terceiro da segunda conseqüência:

“A devoção à Santíssima Virgem Maria será especialmente necessária nesses últimos tempos” (tópico 49).

Notemos bem: será necessária “nesses últimos tempos”. Parece que há uma antítese nesta frase, porque dizer que “será necessária nesses últimos tempos” parece uma contradição.

A expressão “últimos tempos”, na linguagem comum, significa os tempos mais recentes.

Nossa Senhora de Quito esmaga o demônio.
Bernardo de Legarda, 1734.
Dita Virgem do Apocalipse. Museu Etnográfico de Berlim.
Podemos, por exemplo, dizer que “nos últimos tempos temos feito tal ou tal coisa”. São os tempos mais próximos.

Ora, dizer que uma coisa “será necessária nesses últimos tempos” é aparentemente contraditório.

É evidente então que ele entende por “últimos tempos” os últimos tempos nos quais estamos, e que vão daqui por diante se prolongar.

A devoção a Maria será necessária, pois, nesses últimos tempos que já começaram, nos quais já estamos, e que daqui para a frente vão se desenrolar. Veremos isso ao longo da exposição.

São Luís Grignion aponta muito bem os prenúncios da Revolução Francesa. Ele não fala claramente numa revolução, mas menciona uma decomposição moral, religiosa e social que está preparando uma catástrofe.

Ele vê essa decomposição, essa desagregação, como um passo preliminar do fim dos tempos. Esta é a perspectiva em que ele se situa. A respeito dela, veremos o seu pensamento ao longo do livro.

Papel especial de Maria nos últimos tempos – São Luís Grignion divide o papel de Nossa Senhora na história da Igreja em duas partes:

1) quando da primeira vinda de Nosso Senhor;

2) quando da futura segunda vinda de Nosso Senhor.

Segundo ele, quando da primeira vinda Nossa Senhora teve um papel muito escondido, porque, sendo Ela de uma formosura e de um esplendor de personalidade sem iguais, poderia, de certo modo, atrair por demais as vistas e as atenções, deslumbrando tanto, que o papel de Seu divino Filho não ficasse inteiramente claro a todos os homens.

Por essa razão, foi prudente mantê-La na sombra. E assim o Evangelho fala pouco de Nossa Senhora.

Na aurora da Igreja, a irradiação do Seu esplendor era inoportuna, mas na segunda vinda de Nosso Senhor se dará o oposto. Note-se como a idéia dos últimos tempos já está aqui marcada. Com efeito, sabemos que no fim dos tempos Nosso Senhor virá novamente.

São Luís Grignion fala realmente, portanto, do fim dos tempos, quando Jesus Cristo virá pela segunda vez. Nessa segunda vinda Nossa Senhora terá um papel salientíssimo.

Temos aqui um segundo elemento profético, que se soma ao que ele já enunciou afirmando que estamos nos primórdios dos últimos tempos.

Agora ele diz que Nossa Senhora é a figura central dos últimos tempos.

No fim dos tempos Nossa Senhora terá um papel salientíssimo
No fim dos tempos Nossa Senhora terá um papel salientíssimo
São Luís Grignion profetiza que a devoção a Ela vai ser muito mais patente, a Sua ação muito mais visível, o Seu papel na teologia muito mais relevante, à medida que formos nos aproximando dos últimos tempos.

O papel de Nossa Senhora vai, portanto, crescendo ao longo da história da Igreja.

Quando for plenamente conhecido e chegar ao seu completo desenvolvimento, e as intervenções da Santíssima Virgem na vida espiritual quotidiana dos fiéis forem se tornando mais numerosas, mais evidentes, mais translúcidas, teremos o sinal de que os últimos tempos estão próximos.

O engrandecimento da devoção a Nossa Senhora está na raiz dos últimos tempos


São Luís Grignion desenvolve a seguir a afirmação de que há uma incompatibilidade fundamental entre Nossa Senhora e o demônio.

Ele nos mostra que tudo quanto Deus faz é perfeito; que Ele formou uma só inimizade, mas que essa inimizade é perfeita e durável como todas as obras de Deus; e que, portanto, a inimizade entre os filhos do demônio e os filhos de Nossa Senhora é uma inimizade perfeita, completa, durável, que irá até o fim dos tempos.

E os últimos tempos são precisamente aqueles em que o demônio, segundo tudo nos leva a crer, terá um poder maior sobre os homens, por causa da malícia humana.

Serão os tempos do Anticristo.

É bem verdade que se pode sustentar que entre a vinda do Anticristo e o fim do mundo mediará muito tempo, mas é um fato discutível; de qualquer forma, a vinda do Anticristo é considerada um prenúncio do fim do mundo.




Os apóstolos dos últimos tempos e o demônio


Nossa Senhora de Quito, Equador
Nossa Senhora de Quito, Equador
Como se explica que, tornando-se muito maior o papel de Nossa Senhora, cresça também consideravelmente o do demônio? A explicação está nos próprios fatos.

A partir do protestantismo a humanidade não tem feito outra coisa senão piorar; entretanto, a devoção a Nossa Senhora não tem feito outra coisa senão crescer prodigiosamente dentro da Igreja de Deus, nestes tempos.

Os dois fatos são concomitantes. A teologia progride cada vez mais, no sentido de afirmar as grandezas de Nossa Senhora, e os verdadeiros fiéis, por sua vez, são cada vez mais devotos d'Ela. Fora dessa ordem de coisas, contudo, o poder do demônio cresce assustadoramente.

Estes dois progressos em sentidos opostos são incompatíveis, mas o fato de serem concomitantes tem certa lógica.

À medida que a luta entre a Virgem e o demônio torna-se mais aguda, os filhos da Virgem dão-se mais a Ela, e os do demônio mais se dão a ele.

À medida que os maus vão se tornando piores, os que perseveram fiéis, os que têm o heroísmo e a força de pertencer completamente a Nossa Senhora dentro das mais adversas circunstâncias, estes ficam também cada vez mais dominados, mais embebidos pelo espírito de Maria Santíssima.

Temos então, através disto, uma explicação deste duplo fato: de um lado, o ódio satânico contra a Igreja, que cresce cada vez mais; de outro, a devoção a Nossa Senhora, que progride imensamente.

Daí segue-se que a característica específica daqueles que devem viver nestas circunstâncias é que sejam devotos de Nossa Senhora.

Todos os que lutam contra o demônio, contra o poder das trevas, todos os que querem ser marcados pelo “tau” (símbolo dos que se mantêm fiéis no meio da apostasia geral, e inconformados com o que se passa entre o povo de Deus) do não conformismo com o estado de coisas atual, todos devem ter, como característica própria, uma grande devoção a Maria Santíssima. São coisas forçosamente interligadas.

São Luís Grignion expõe então as características da ação de Nossa Senhora nesta luta.


Nossa Senhora do Socorro, Ascoli Satriano, Itália
Nossa Senhora do Socorro, Ascoli Satriano, Itália

A inimizade entre Maria e Lúcifer


“Uma única inimizade Deus promoveu e estabeleceu, inimizade irreconciliável, que não só há de durar, mas aumentar até o fim” (tópico 52).

Portanto, esta inimizade não só há de durar, mas há de aumentar até o fim. Não que o ódio de Nossa Senhora contra o demônio cresça, porque já é tão grande quanto possível; nem que cresça o ódio dele contra Ela, porque já chegou à totalidade desde o primeiro instante.

Mas a luta entre Ela e ele é que irá aumentando até o fim. É a confirmação do que dizíamos.

Continua São Luís Grignion:

“... a inimizade entre Maria, Sua digna Mãe, e o demônio; entre os filhos e servos da Santíssima Virgem e os filhos e sequazes de Lúcifer” (tópico 52).

Note-se que não cresce até o fim apenas a luta entre Nossa Senhora e o demônio, mas também a inimizade entre os filhos d'Ela e os filhos de Satanás.

Em outras palavras, à medida que a Igreja caminha ao longo dos séculos, o ódio dos filhos do demônio aos de Nossa Senhora deve crescer, devendo também aumentar o ódio dos filhos de Maria Santíssima aos do demônio.




Maria, a mais terrível inimiga de Lúcifer


Nossa Senhora do Socorro, ou do flagelo,  igreja de Santa Marina, Castel Ritaldi, Itália.
Nossa Senhora do Socorro, ou do flagelo,
igreja de Santa Marina, Castel Ritaldi, Itália.
“...de modo que Maria é a mais terrível inimiga que Deus armou contra o demônio” (tópico 52).

Vê-se uma primeira nota da luta de Nossa Senhora contra o demônio: Ela é terrível. É uma qualidade de Nossa Senhora. Se Ela é terrível em relação ao demônio, nós, o que havemos de ser? Risonhos e sem energia? Estultos seríamos!

Maria cheia de graça, Maria cheia de ódio ao mal

“Ele Lhe deu até, desde o paraíso, tanto ódio a esse amaldiçoado inimigo de Deus” (tópico 52).

Eis a segunda característica de Nossa Senhora: Ela é cheia de ódio em relação ao amaldiçoado inimigo de Deus, e esse ódio Lhe foi dado antes mesmo de nascer, no paraíso. Quando da primeira profecia de Maria, Ela já veio carregada de ódio santo de Deus.

A clarividência mariana

“... tanta clarividência para descobrir a malícia dessa velha serpente” (tópico 52)

Eis aqui a argúcia, que causa tanto terror aos adversários dos filhos de Nossa Senhora: é aquele senso de ortodoxia, por onde se percebe o quinto sentido subjacente numa palavra ambígua, e se demonstra o seu conteúdo herético.

Os filhos das trevas ficam indignados, estertoram, mas a heresia fica denunciada. Esta clarividência é um dom de Nossa Senhora, é uma característica que Ela recebeu de Deus. Se nós não tivermos essa clarividência, não possuiremos o espírito d'Ela e não A imitaremos.

Aquele que é apresentado como o maior doutor marial da Igreja é quem no-La apresenta como modelo de clarividência para descobrir as artimanhas do demônio.

E essas artimanhas não são só doutrinárias. O demônio é o pai da mentira e da politicagem, e é preciso que se tenha solércia para perceber as tramas de Satanás e para saber enfrentá-lo. São dons que vêm de Nossa Senhora, e que devemos pedir a Ela.

São traços da posse do espírito marial. É São Luís Grignion quem o afirma.

Maria, esmagadora e aniquiladora de Satanás


“... tanta força para vencer, esmagar e aniquilar esse ímpio orgulhoso” (tópico 52).

Nossa Senhora das Milícias, Sicília, Itália.
Nossa Senhora das Milícias, Sicília, Itália.
Para vencer, esmagar e aniquilar satanás, ou seja, para triturá-lo por todas as formas. As vitórias de Nossa Senhora sobre o demônio não são superficiais, como que “per summa capita”.

Se Ela vence, é para esmagar e aniquilar; e estas são duas expressões que significam que o adversário será reduzido a pó.

Este é o espírito de Nossa Senhora. Não se trata de obter uma pequena vitória, por assim dizer “acadêmica”, mas sim de aniquilar e esmagar.

Estas são duas palavras muito apropriadas: o esmagado não está apenas jogado por terra, mas sob o peso de uma derrota tal, que perde a própria forma; está triturado; e o aniquilamento é algo ainda pior, porque o aniquilado deixa de existir, é reduzido a “nihil”, a nada, reduzido a pó; pior do que pó, reduzido a vácuo. Assim é como Nossa Senhora vence.

Maria, mais terrível que o próprio Deus

“... que o temor que Maria inspira ao demônio é maior que o que lhe inspiram todos os Anjos e homens, e, em certo sentido, o próprio Deus” (tópico 52).

Detenhamo-nos na expressão “em certo sentido, o próprio Deus”. Vale dizer que, apesar de Deus ser onipotente e de todo o poder de Nossa Senhora não ser senão o poder d'Ele, de alguma forma o demônio tem mais medo de Maria Santíssima do que de Deus.

Nossa Senhora do Socorro, igreja de San Antonio Abad, Avellino, Itália
Nossa Senhora do Socorro, igreja de San Antonio Abad,
Avellino, Itália
Compreende-se então que seja muito eficaz na luta contra o demônio não falar apenas de Deus, mas também, com toda a imensa evidência que merece, da Santíssima Virgem.

O ponto que o deixa mais acabrunhado e esmagado é o fato de sê-lo por Nossa Senhora.

“Não que a ira, o ódio, o poder de Deus não sejam infinitamente maiores que os da Santíssima Virgem, pois as perfeições de Maria são limitadas. Mas, em primeiro lugar, Satanás, porque é orgulhoso, sofre incomparavelmente mais, por ser vencido e punido pela pequena e humilde escrava de Deus, cuja humildade o humilha mais que o poder divino” (tópico 52).

Deus quer então vencer Satanás por meio de Nossa Senhora. As suas graças são concedidas sempre por meio d'Ela, porque assim Ele vence melhor o demônio.

Satanás é esmagado, é humilhado por Aquela cujo poder ele não quis reconhecer no Céu, e foi exatamente (segundo conceituados teólogos) em consequência dessa recusa que apostatou.

Por meio de Nossa Senhora a vitória de Deus é mais completa.

“Segundo, porque Deus concedeu a Maria tão grande poder sobre os demônios, que – como muitas vezes se viram obrigados a confessar pela boca dos possessos – infunde-lhes mais temor um só de seus suspiros por uma alma do que as orações de todos os santos, e uma só de suas ameaças do que todos os outros tormentos” (tópico 52).

Quando se perguntou a marinheiros da esquadra turca de Lepanto por que, em determinado momento, se sentiram tomados de pânico e fugiram, responderam que viram no céu uma senhora admirável, que os olhava tão terrivelmente que não puderam resistir.

É o importante traço distintivo da devoção a Maria, que São Luís Grignion nos aponta uma vez mais: Ela, o terror dos demônios.

É portanto sumamente eficaz na luta contra o poder das trevas revestir-se, por assim dizer, de Maria Santíssima. É o modo seguro de se conseguir as vitórias para Ela.




Os Santos dos Últimos Tempos


São Luis Grignion escrevendo o Tratado da Verdadeira Devoção
São Luis Grignion escrevendo o Tratado da Verdadeira Devoção
Saint-Laurent-sur-Sèvre, França.
No tópico 54, São Luís Grignion começa a tratar, pela primeira vez, dos santos que, suscitados por Nossa Senhora, florescerão nos últimos tempos da Igreja, e que serão de uma santidade maior do que os de qualquer tempo anterior. São Luís Grignion, em tom profético, trata longamente destes Santos dos Últimos Tempos.

“Mas o poder de Maria sobre todos os demônios há de patentear-se com mais intensidade nos últimos tempos, quando Satanás começar a armar insídias ao seu calcanhar, isto é, aos seus humildes servos, aos seus pobres filhos, os quais Ela suscitará para combater o príncipe das trevas” (tópico 54).

Aparece aqui um terceiro elemento: haverá pessoas que, suscitadas por Maria de modo especial, farão a guerra ao demônio. Contra essas almas, Satanás levantará a mesma guerra que urde contra Nossa Senhora. Esses escravos de Maria, pela submissão e união a Ela, serão o Seu calcanhar, alvo das insídias do demônio, mas também instrumento para aniquilá-lo.

O “tau” ou o calcanhar?

“Eles serão pequenos e pobres aos olhos do mundo, e rebaixados diante de todos, como o calcanhar; calcados e perseguidos como o calcanhar, em comparação com os outros membros do corpo” (tópico 54).

Fato terrível: a vocação do apóstolo de Nossa Senhora é ser como que o calcanhar do gênero humano, que o pisa e anda calcando-o.

A vocação daqueles que são apóstolos de Maria Santíssima consiste em servir de calcanhar. De calcanhar ativo, que retribui os golpes.

Quando consideramos a nossa situação de apóstolos da Contra-Revolução, devemos reconhecer que ela tem muito de “calcanharesco”.

Se não tivéssemos escolhido por nosso sinal o “tau”, escolheríamos o calcanhar. O calcanhar tem uma sublime missão. Se é bem verdade que ele é calcado, é dele a glória de calcar.

E há uma cabeça que foi feita para ser por ele pisada: a de Lúcifer. Devemos estar à procura dessa cabeça, para pisá-la, com a graça de Nossa Senhora.

O profeta Santo Elias trucidando os falsos profetas de Baal foi uma prefigura dos Apóstolos dos Últimos Tempos. Estátua no Monte Carmelo, Terra Santa.
O profeta Santo Elias trucidando os falsos profetas de Baal
foi uma prefigura dos Apóstolos dos Últimos Tempos.
Estátua no Monte Carmelo, Terra Santa.

Serão santos superiores a toda criatura

“Mas, em troca, eles serão ricos em graças de Deus, graças que Maria lhes distribuirá abundantemente. Serão grandes e notáveis em santidade diante de Deus, superiores a toda criatura, por seu zelo ativo” (tópico 54).

São Luís Grignion faz um outro prenúncio: os apóstolos dos últimos tempos serão santos excepcionais, como não há em nossa época e não houve no passado.

Dizendo “superiores a toda criatura”, envolve pois as do passado. Serão Santos maiores do que todos os dos séculos passados.

Deverão florescer no futuro, mas de sua santidade e de sua vocação participam desde já todos aqueles que batalham nesta mesma luta contra o poder das trevas.

“... e tão fortemente amparados pelo poder divino que, com a humildade de seu calcanhar, e em união com Maria, esmagarão a cabeça do demônio e promoverão o triunfo de Jesus Cristo” (idem).

É o final da profecia: haverá um período de justiça, alcançado por estes apóstolos. Eles esmagarão a cabeça do demônio.

Vemos, portanto, as características fundamentais desses apóstolos, postas por São Luís Grignion:

a) É uma raça espiritual, oposta e irredutivelmente adversa a Lúcifer e à raça deste;

b) São homens que viverão num estado de perseguição constante;

c) Serão chamados por Maria Santíssima, de um modo especial, a uma grande dedicação à causa da Igreja;

d) Acabarão por vencer, porque esmagarão a cabeça do demônio.

São os traços distintivos dos Santos dos Últimos Tempos. Mas, como estes tempos já começaram (segundo a linguagem de São Luís Grignion, a sua época estava já dentro da perspectiva dos últimos tempos), os santos de nossa época estão já numa espécie de relação com os dos últimos dias da Igreja.

O santo de nossa época é, pois, o tipo do santo dos Últimos Tempos, descrito por São Luís Grignion, que ele apresenta como um fruto característico da devoção a Maria Santíssima.

Há, portanto, uma conexão muito grande entre os últimos tempos e a nossa época, entre os Santos dos Últimos Tempos e os batalhadores da causa da Igreja em nossos dias.




Os Apóstolos dos Últimos Tempos


Queda dos anjos rebeldes. Pieter Bruegel, detalhe
Queda dos anjos rebeldes. Pieter Bruegel, detalhe
São Luís Grignion nos fala agora especificamente dos Apóstolos dos Últimos Tempos:

“Deus quer, finalmente, que Sua Mãe Santíssima seja agora mais conhecida, mais amada, mais honrada, como jamais o foi” (tópico 55).

Dizíamos acima que, nos últimos tempos, Nossa Senhora seria mais conhecida e mais amada. Neste tópico São Luís Grignion nos afirma que é agora, isto é, no tempo dele. Portanto, sua época já participa dos últimos tempos.

“E isto acontecerá, sem dúvida, se os predestinados puserem em uso, com o auxílio do Espírito Santo, a prática interior e perfeita que lhes indico a seguir” (tópico 55).

Eis o papel histórico da devoção que prega. É o meio pelo qual os predestinados da graça podem adquirir este espírito e colocar-se de acordo com a sua vocação. É a devoção que até aí conduz.

“E, se a observarem com fidelidade, verão então claramente, quanto lho permite a Fé, esta bela Estrela do Mar, e chegarão a bom porto, tendo vencido as tempestades e os piratas. Conhecerão as grandezas desta Soberana, e se consagrarão inteiramente a seu serviço, como súditos e escravos de amor” (tópico 55).

Será que antes de São Luís Grignion – poder-se-ia perguntar – ninguém conheceu Nossa Senhora?

Maria Santíssima não levou antes dele ninguém a bom porto? Será que Ela não fez manifestar na Igreja, antes dele, as suas grandezas?

Seria absurdo admiti-lo. Por que então ele apresenta estas coisas como típicas do seu espírito? É porque elas serão mais reais nas almas formadas em sua escola de espiritualidade do que em qualquer outra.

O que já é verdade de todos os santos, de todos os que seguem a doutrina da Igreja, sê-lo-á muito mais ainda dos que seguirem a espiritualidade de São Luís Grignion.

Ele aqui apenas insinua o que irá dizer mais tarde: a devoção que ensina e os princípios mariais que inculca não são acessíveis ao conhecimento de qualquer homem.

Conhecer bem Nossa Senhora, praticar esta devoção, é uma predestinação, é uma graça especial, não comum. Esta não é uma devoção para qualquer pessoa, mas apenas para alguns predestinados.

É uma graça especialíssima, que Deus reserva para os últimos tempos. Por isso, mais tarde ele dirá que, para compreender esta devoção e praticá-la verdadeiramente, é preciso ter recebido um chamado muito especial.

O restante do tópico contém uma série de promessas sobre as quais não há comentários especiais a fazer.

Serão como flechas

“Mas quem serão esses servidores, esses escravos e filhos de Maria? “ (tópico 56).

Aqui segue a descrição dos Apóstolos dos Últimos Tempos:

“Serão ministros do Senhor, ardendo em chamas abrasadoras, que lançarão por toda parte o fogo do divino amor. Serão sicut sagittæ in manu potentis (Sl. 126,4) flechas agudas nas mãos de Maria todo-poderosa, pronta a transpassar seus inimigos” (tópico 56).

A devoção a Maria Santíssima, segundo São Luís Grignion, está aliada à combatividade. Não se trata apenas de fazer “cordeirinhos de Cristo Rei”.

Serão ascetas, colados a Deus e à Sua Igreja

“filhos de Levi, bem purificados no fogo das grandes tribulações, e bem colados a Deus” (tópico 56).

É importante observar o grau de união a Deus, que está prometido. E só há um meio de estar colado a Deus: é estar colado à Igreja de Deus. Estar colado significa estar unido sem qualquer interstício, sem vácuo algum; é estar preso por todas as aderências possíveis à Igreja de Deus.

Este é o sentido que ele nos quer dar, inculcando o espírito de devoção à Igreja Católica.

Queda dos anjos rebeldes. Pieter Bruegel, detalhe
Queda dos anjos rebeldes. Pieter Bruegel, detalhe
“... que levarão o ouro do amor no coração, o incenso da oração no espírito, e a mirra da mortificação no corpo” (tópico 56).

É a idéia da ascese, da austeridade, da virtude dura, mortificada.

Serão o bom odor de Jesus Cristo para os desapegados

“... e que serão em toda parte, para os pobres e pequenos, o bom odor de Jesus Cristo; e para os grandes, os ricos e os orgulhosos do mundo, um odor repugnante de morte” (tópico 56).

O que são, na linguagem da Escritura, os pobres e os pequenos? Não são os sequazes dos demagogos modernos.

Ser pobre e pequeno é ser pobre de espírito, é ser desapegado. Para esses é que é bom odor a presença dos servidores de Maria.

Serão o terror do demônio

“Serão nuvens trovejantes” (tópico 57).

Não são zéfiros nem brisas amenas, que trazem o bom odor das sensações emocionantes e românticas para as almazinhas adocicadas. São nuvens tonitroantes, que voam pelos ares.

A imagem é majestosa, grandiosa. Reflete, em contraposição à suavidade de certo tipo de religiosidade sentimental, a grandeza, o poder e a cólera de Deus. A nuvem trovejante é a nuvem carregada, na qual o raio se forma, e da qual é lançado.

“... esvoaçando pelo ar ao menor sopro do Espírito Santo” (tópico 57).

Uma atmosfera cheia de nuvens trovejantes, a esvoaçar do Oriente ao Ocidente, não reflete absolutamente o clima carregado de otimismo que em certos ambientes se encontra.

“... que, sem apegar-se a coisa alguma nem admirar-se de nada, nem preocupar-se, derramarão a chuva da palavra de Deus e da vida eterna. Trovejarão contra o pecado” (tópico 57).

Não se trata, portanto, de pregar bondade contra o pecado.

“... e lançarão brados contra o mundo, fustigarão o demônio e seus asseclas, e, para a vida ou para a morte, transpassarão lado a lado, com a espada de dois gumes da palavra de Deus (cfr. Ef. 6, 17), todos aqueles a quem forem enviados da parte do Altíssimo” (tópico 57).

São batalhadores eficacíssimos, que têm a espada de dois gumes da palavra de Deus.

Os apóstolos que São Luís Grignion assim descreve são homens de um poder verdadeiramente terrível, que causam ao demônio um medo capaz de desfazer as suas tramas. Argutos, perspicazes e vigorosos, esses apóstolos são o protótipo do verdadeiro católico.








Verdades fundamentais da devoção à Santíssima Virgem


Nossa Senhora de Lourdes

Capítulo II


Nesta parte da exposição, não nos ateremos muito ao texto de São Luís Grignion, pois a partir deste Capítulo II (tópico 60) o Santo, levado pelo calor de sua exposição, vai se tornando cada vez menos didático.

Uma montagem inteiramente raciocinada de seu pensamento exigiria uma alteração na ordem dos princípios enumerados. Comentaremos apenas um trecho muito marcante, e a partir dele discorreremos livremente.

Antes, porém, detenhamo-nos nos tópicos 63, 64 e 65, onde ele aborda um assunto que, apesar de estar um pouco à margem da sequência do pensamento que está sendo desenvolvido, é também de grande interesse.

Ataques aos inimigos da Igreja


Os piores adversários de São Luís Grignion, como sabemos, foram os jansenistas, contra os quais ele teve muito que lutar.

Ele encontra um meio de, em seus livros, atacar os sacerdotes e bispos jansenistas, explicando que esses seus inimigos estão contra a doutrina católica.

Este é um dos primeiros tópicos do livro em que arma um verdadeiro libelo contra o clero jansenista e contra todos os pensadores contrários à verdadeira doutrina da Igreja, defendida por ele.

Cornelius Jansenius (1510 – 1576), bispo de Gante e Ypres espalhou um espírito oposto à devoção a Nossa Senhora.
Cornelius Jansenius (1510–1576), bispo de Gante e Ypres
espalhou um espírito oposto à devoção a Nossa Senhora.
Cornelius Otto Jansen, também conhecido como Jansênio (28-10-1585 – 6-5-1638), foi bispo de Ypres (Bélgica flamenga), filósofo e teólogo nederlandês, que fundou o jansenismo, o qual – entre outros males – prestigiou o cartesianismo

Foi preciso, naturalmente, encontrar uma maneira prudente de fazê-lo, pois graves dificuldades lhe poderiam advir se escrevesse diretamente contra os bispos jansenistas.

A maneira que São Luís Grignion encontra para esta empresa é bastante curiosa. Depois de falar a respeito da devoção a Nossa Senhora, e de dizer que há pessoas cuja devoção à Virgem Santíssima é muito restrita, ele escreve:

“Volto-me aqui, um momento, para Vós, ó Jesus, a fim de queixar-me amorosamente à Vossa divina majestade de que a maior parte dos cristãos, mesmo os mais instruídos, desconhecem a ligação imprescindível que existe entre Vós e Vossa Mãe Santíssima” (tópico 63).

Há já aqui uma insinuação: “a maior parte dos cristãos, mesmo os mais instruídos”. Os mais sábios, evidentemente, são os doutores, são os “mestres em Israel”.

Ele não fala dos mais sábios em mineralogia ou em botânica, mas em teologia. Ora, isso equivale a dizer: “Há teólogos que sustentam que a devoção a Nossa Senhora está errada”.

Prossegue São Luís Grignion:

“Vós, Senhor, estais sempre com Maria, e Maria sempre convosco, nem pode estar sem Vós; doutro modo Ela deixaria de ser o que é; e de tal maneira está Ela transformada em Vós pela graça, que já não vive, já não existe: sois Vós, meu Jesus, que viveis e reinais n'Ela, mais perfeitamente do que em todos os Anjos e bemaventurados.

“Ah! se conhecêssemos a glória e o amor que recebeis nesta admirável criatura, bem diferentes seriam os nossos sentimentos a respeito de Vós e d'Ela.

“Maria está tão intimamente unida a Vós, que mais fácil seria separar o sol da luz, e do fogo o calor; digo mais: com mais facilidade se separariam de Vós os Anjos e os santos, do que a divina Mãe, pois que Ela Vos ama com mais ardor e Vos glorifica com mais perfeição que todas as Vossas outras criaturas juntas” (tópico 63).

“Depois disto, meu amável Mestre, não é triste e lamentável ver a ignorância e as trevas em que jazem todos os homens na Terra, a respeito de vossa Mãe Santíssima?

“Não falo dos idólatras e pagãos, que, não Vos conhecendo, também não se importam de conhecê-La; nem falo dos hereges e cismáticos, que não têm a peito ser devotos de vossa Mãe Santíssima, pois estão separados de Vós e de Vossa Santíssima Igreja; falo, porém, dos cristãos católicos, e mesmo de doutores entre os católicos” (tópico 64).

Aqui a referência contra o clero jansenista é direta, pois ele fala em “doutores entre os católicos”. Mas ele não se comprometeu, já que doutores podem ser chamados também os que escrevem livros sobre o assunto.

Nós sabemos, no entanto, quem são esses “doutores”. Também para o povo, que o vê enxotado de uma diocese para outra, não pode restar dúvida a respeito de quem sejam esses “doutores”.

“...mesmo de doutores entre os católicos, que exercem a profissão de ensinar aos outros a verdade, e no entanto não Vos conhecem nem a Vossa Mãe Santíssima, a não ser de um modo especulativo, seco, estéril e indiferente” (tópico 64).




A pretexto de não ofender a Nosso Senhor, destroem a devoção a Nossa Senhora


Assunção de Nossa Senhora.
Ugolino Lorenzetti, século XIV

Semelhança com os dias atuais


Isto é muito curioso. Atualmente os teólogos são também unânimes em afirmar as grandezas de Nossa Senhora. Não há um que ouse negar aquilo que dizemos a respeito d'Ela.

E, no entanto, o que distingue os devotos de Nossa Senhora dos que não Lhe têm devoção, tanto hoje quanto no tempo de São Luís Grignion, é o mesmo. Estes últimos aprendem as verdades a respeito d'Ela, mas “de um modo especulativo, seco, estéril e indiferente”.

Especulativo – Há alguns teólogos que, inquiridos a respeito da devoção a Nossa Senhora, sabem dizer tudo com uma esquematização perfeita.

Além disso, todas as suas afirmações são verdadeiras e certas. Mas é um conhecimento meramente especulativo, pois não há neles um amor vivo, uma atitude concreta que corresponda àquela convicção. Pelo contrário, tudo permanece etéreo.

Seco – Há os que fazem da Mariologia o que poderíamos chamar de “geometria dogmática”.

Sabem citar todos os trechos da Sagrada Escritura ou dos Doutores da Igreja, e conhecem todas as regras de exegética que fundamentam os privilégios de Nossa Senhora. Mas esses conhecimentos não geram neles nem piedade, nem amor, nem entusiasmo.

E, com a mesma indiferença com que um técnico, baseado em tabelas, fala a respeito da composição química dos anéis de Saturno, assim falam eles a respeito de Nossa Senhora e dos Seus privilégios.

Estéril – Essa maneira de pregar a devoção a Nossa Senhora não contagia ninguém, nem produz frutos apostólicos de qualquer espécie. Na formação ministrada por essas pessoas, Nossa Senhora não representa absolutamente o papel que Lhe atribui a doutrina católica.

A vida interior das almas por elas formadas não deixa transparecer uma devoção a Nossa Senhora correspondente ao que a Igreja ensina. Portanto, os desvios de outrora são muito parecidos com os de hoje. Uma devoção a Nossa Senhora com calor, comunicativa, ardente, fecunda, é muito raro encontrar.

Nossa Senhora do Rosário. Igreja de Santo Antônio, São Paulo, Brasil
Nossa Senhora do Rosário.
Igreja de Santo Antônio, São Paulo, Brasil
Continua São Luís Maria Grignion de Montfort:

“Estes senhores raras vezes falam de Maria e da devoção que se Lhe deve ter, porque – dizem – receiam que se abuse dessa devoção, e que se Vos ofenda honrando excessivamente Vossa Mãe Santíssima” (tópico 64).

Encontramos às vezes, entre católicos, a formulação de que o culto a Nossa Senhora é coisa boa, mas que “há um certo exagero nele, por onde Nosso Senhor não é suficientemente cultuado; é preciso cultuar a Virgem Santíssima, mas reservando sempre o primeiro lugar para Nosso Senhor”.

Ligada a esta formulação que amalgama dolosamente erros e verdades, há também uma atitude falsa com relação à devoção ao Santíssimo Sacramento.

Assim, por exemplo, entrando numa igreja, encontramos com certa frequência pessoas instruídas na Religião, rezando diante do Santíssimo Sacramento. Mas se formos procurá-las diante de uma imagem de Nossa Senhora, rarissimamente as encontraremos.

Tem-se a impressão de que, para eles, o culto das imagens é uma espécie de utensílio para a piedade mais primitiva dos fiéis, uma coisa superficial. Por isso, em geral, entra-se numa igreja e se vai rezar diante do Santíssimo Sacramento; diante de uma imagem de Nossa Senhora, quão mais raro!

A verdade, porém, é inteiramente outra. De fato, o objeto principal de nosso culto numa igreja é o Santíssimo Sacramento. Mas se quisermos cultuá-Lo bem, é excelente que passemos por uma imagem de Nossa Senhora, pedindo a Ela as forças e as graças para fazermos diante de Nosso Senhor um minuto de adoração bem feita.

Em um dos ritos da Igreja Oriental há um costume muito bonito, pelo qual, antes da comunhão, os fiéis passam diante de ícones que há ao lado do altar-mor, e rezam aos santos ali representados para que os auxiliem, naquele momento de receber Nosso Senhor.

E após receberem as Sagradas Espécies, passam diante dos ícones do lado oposto, e pedem aos santos que os auxiliem para bem receber os frutos da comunhão.

Esta é uma compreensão perfeita do culto a Nosso Senhor. O bom católico nunca o vê separado do culto aos santos, muito menos ainda do culto a Nossa Senhora, pois a auréola normal de Nosso Senhor são os seus Anjos e seus santos.




Apresentar Nossa Senhora de um modo terno, forte e persuasivo


Nossa Senhora na Glória, catedral de Aachen, Alemanha
Nossa Senhora na Glória, catedral de Aachen, Alemanha
“Se vêem ou ouvem algum devoto da Santíssima Virgem falar muitas vezes, dum modo terno, forte e persuasivo, da devoção a esta boa Mãe como de um meio seguro e sem ilusão, dum caminho curto e sem perigo, duma via imaculada e sem imperfeição, e dum segredo maravilhoso para chegar a Vós e Vos amar perfeitamente, clamam contra ele, e lhe apresentam mil razões falsas para provar-lhe que não é necessário falar tanto a respeito da Santíssima Virgem, que há muito abuso que é preciso empenhar-se em destruir, nessa devoção, e aplicar-se em falar sobre Vós, em vez de favorecer a devoção à Virgem Maria, a quem o povo já ama suficientemente” (tópico 64).


É a expressão do mesmo pensamento. Notemos, contudo, um pormenor: “Se vêem algum devoto da Santíssima Virgem falar muitas vezes, de um modo terno, forte e persuasivo”.

Como se vê, até nas pequenas coisas de São Luís Grignion temos uma total identidade de posição com ele. Não se deve falar de Nossa Senhora de modo oco e romanceado, mas, como fez São Luís, de modo afetuoso, forte e persuasivo.

Afetuoso e forte, isto é, que atinge a vontade; persuasivo, que atinge a inteligência. Nossa devoção à Virgem Santíssima deve basear-se em coisas que atinjam a inteligência, e não consistir apenas em melúrias e coisas adocicadas.

Conjuração sistemática contra Nossa Senhora


“Às vezes metem-se a falar da devoção à Virgem Mãe Santíssima, não, porém, para assentá-la e propagá-la, e sim para destruir os abusos que dela se fazem. Estes senhores são, no entanto, desprovidos de piedade, e não têm por Vós sincera devoção, pois que não a têm a Maria.

“Consideram o rosário, o escapulário, o terço, como devoções de mulheres, próprias de ignorantes, sem as quais se pode obter muito bem a salvação. E se lhes cai nas mãos algum devoto da Virgem Santíssima que recita o seu terço ou pratica qualquer outra devoção mariana, mudam-lhe em pouco tempo o espírito e o coração.

“Em lugar do terço lhe aconselham recitar os sete salmos; em vez da devoção à Santíssima Virgem, aconselham a devoção a Jesus Cristo” (tópico 64).

São Luís Grignion denuncia aí um trabalho sistemático contra Nossa Senhora, feito dentro da Igreja. Mostra que havia, naquele tempo, pessoas desprovidas de sincera devoção para com Nosso Senhor, que tinham como principal preocupação destruir a devoção à Virgem Santíssima.

Assim, se caísse em suas mãos alguém que tivesse o hábito de rezar o terço, a primeira coisa que fariam seria procurar tirar-lhe esse hábito, para aconselhá-la a rezar os salmos.

São desvios antigos, que precederam os erros do liturgicismo. Os salmos, como sabemos, constituem a principal oração da Liturgia Sagrada, mas substituir com eles, obrigatoriamente, o rosário...

Nossa Senhora de Covadonga. Covadonga, Astúrias, Espanha.
Nossa Senhora de Covadonga. Astúrias, Espanha.
Há uma analogia muito grande nesse ponto. É importante ter presente que, segundo São Luís Grignion, essas pessoas não têm amor a Jesus Cristo, mas consagram-se apenas a destruir a devoção a Nossa Senhora, simplesmente porque a querem aniquilar. E não a substituirão por uma verdadeira devoção a Nosso Senhor.

Se formos verificar o resultado da ação dessas pessoas, zelosas em diminuir a devoção a Nossa Senhora, veremos que elas diminuem também o culto a Nosso Senhor. A devoção que têm a Jesus é fraca, pequena, sem consistência.

Pelo contrário, naqueles que não temem exagerar a devoção a Nossa Senhora pelo receio de diminuir o culto a Nosso Senhor, verificamos que o amor deles a Jesus Cristo é intensíssimo.

É a confirmação de que a verdadeira devoção a Jesus Cristo só existe quando há devoção à Virgem Santíssima. São as palavras de São Luís Grignion:

“Ó meu amável Jesus, terá essa gente o Vosso Espírito? Será possível que Vos agradem, agindo desse modo? Poderá alguém agradar-Vos, sem fazer todos os esforços para agradar a Maria, por medo de Vos desagradar? A devoção à Vossa Mãe impede a Vossa? Atribuirá Ela a si as honras que Lhe damos? Formará Ela um partido diverso do Vosso? É Ela, acaso, uma estrangeira sem a menor ligação convosco? É desagradar-Vos, querer agradar-lhe? Separamo-nos, talvez, ou nos afastamos de Vosso amor, se nos damos a Ela e A Amamos?” (tópico 64).

Como se conhecem os verdadeiros homens de Deus


“Entretanto, meu amável Mestre, a maior parte dos sábios, em castigo de seu orgulho, não se afastariam mais da devoção à Santíssima Virgem, nem a olhariam com mais indiferença, se tudo o que acabo de dizer fosse verdade. Guardai-me, Senhor, guardai-me de seus sentimentos e de suas práticas, e dai-me uma parte dos sentimentos de reconhecimento, de estima, de respeito e de amor, que tendes para com Vossa Mãe Santíssima, a fim de que eu Vos ame e glorifique na medida em que Vos imitar e mais de perto Vos seguir” (tópico 65).

Aqui a acusação se amplia: já não é “um ou outro” sábio, mas “a maior parte dos sábios”. É uma admoestação aos leitores, para que não sigam esses doutores pestilenciais, mas sigam a ele na devoção que ensina.

Problema angustiante para São Luís Grignion


O Santo estava às voltas com um problema que encontramos em diversas épocas históricas. Imaginemos um fiel daquela época.

Ao ler isto, ele verificaria que já ouviu de outros padres, talvez até de algum bispo, o que São Luís Grignion está condenando. Imediatamente surgiria uma dúvida:

“A quem seguir? A um missionário que anda de um lado para outro, mal visto por tantos, ou a um bispo a quem não falta, entre outras coisas, o peso do prestígio? A esse padrezinho ou ao clero jansenista, que parece pensar de modo diferente? Que valor tem esse Grignion? Que mérito?”

É preciso ver que Nosso Senhor dá às almas dois modos para conhecerem o caminho. O primeiro consiste na análise da doutrina, conferindo-a com a da Igreja Católica.

Nossa Senhora das Cruzadas. Thuret, França.
Nossa Senhora das Cruzadas. Thuret, França.
O segundo é por uma qualidade que se chama discernimento dos espíritos. Por ela somos capazes de discernir, mediante a fidelidade à graça de Deus, aqueles que têm verdadeiramente o espírito da Igreja. Se formos fiéis às graças que recebemos, saberemos quem é de Deus e quem não o é.

Ora, está de acordo com a ordem desejada pela Providência que tenhamos, guiados por esse discernimento, uma confiança especial naqueles que temos certeza de que nos levam para Deus, sacrificando inclusive, dentro do limite da prudência – pois infalível é apenas a Igreja Católica – algo de nossa opinião pessoal.

Isto se dava com os fiéis franceses daquele tempo. Eles tinham a graça suficiente para ver em São Luís Grignion um homem de Deus.

Deviam, portanto, corresponder a essa graça e crer nesse homem. Se cressem nele, estariam bem; se não, estariam mal. Esse discernimento dos espíritos, nenhum fiel pode deixar de praticar.

No Antigo Testamento ele era necessário para se reconhecer os verdadeiros profetas, pois havia muitos impostores.

Atualmente a prática desse discernimento tornou-se mais fácil, pois temos o magistério infalível da Igreja. A adesão a este Magistério é um critério seguríssimo de verdade, mesmo que esteja contra a opinião de todos os homens.

Há ainda outro critério: quando sentimos que alguém revela um espírito de obediência absoluta à Igreja, de tal maneira que seja capaz de abandonar qualquer opinião própria, se a Igreja disser o contrário; que tenha, portanto, verdadeira humildade em relação a Ela, então podemos nele confiar. Quando não o sentimos, tomemos as devidas precauções.

Em São Luís Grignion era admirável a disciplina absoluta que tinha em relação à Igreja Católica, de maneira tal que escrevia tudo isso porque estava de acordo com Ela.

Se, porventura, a Santa Sé alterasse em qualquer coisa a doutrina exposta por ele, submeter-se-ia e renunciaria a tudo o que fosse preciso. Esta é a disposição que tem um verdadeiro católico, e é por ela também que se reconhece o verdadeiro católico.

Enfim, fica atestado que os problemas da época de São Luís Grignion eram semelhantes aos que têm existido na Igreja, em outras épocas.

Diante disso, ele era obrigado a usar uma tática ardilosa e indireta, para dizer o que queria. Isto vem refutar, por si só, aqueles que acham que a virtude é inteiramente simples, cândida e sem artifícios.

Pelo contrário, sua linguagem pode ser, por vezes, artificiosa e até apimentada. Ele usa dela para inculcar nos fiéis as qualidades da verdadeira devoção mariana: afeto, força, persuasão.

Assim deve ser a ação do apóstolo que deseja a propagação da devoção à Virgem Santíssima.




Características da escravidão a Nossa Senhora


Nossa Senhora de Guadalupe, México, padroeira da América
Nossa Senhora de Guadalupe, México, padroeira das Américas
Vistos assim os tópicos 63, 64 e 65, que tratam de um assunto um tanto à margem da matéria, mas muito interessante, voltemos ao Capítulo II. Conforme prevenimos, nos ateremos menos ao texto, pelas razões que já demos.

São Luís Grignion expõe, a partir do tópico 69, o verdadeiro sentido da escravidão. Mostra inicialmente as diferenças entre o escravo e o servidor. “Servidor”, em sua linguagem, é o empregado, locatário de serviços, no sentido atual destes dois vocábulos.

Trata-se pois de estabelecer a diferença entre um “escravo” e um “empregado”, no sentido hodierno da palavra.

As três principais diferenças, postas em foco por ele, são:

a) a escravidão se caracteriza, antes de tudo, por ser perpétua. A locação de serviços, ao contrário, é temporária. Ela pode ser por tempo fixo ou indeterminado. De um modo ou de outro, em dado momento, qualquer das partes poderá rescindir a locação.

b) A escravidão é incondicional, total, domina completamente o homem. O direito do senhor sobre o escravo é um direito completo, chegando até, nos países pagãos, a incluir o direito de vida e de morte.

Os direitos do patrão sobre o empregado são circunscritos: um colono, por exemplo, não pode ser obrigado abruptamente a trabalhar fora das horas de serviço. Seu contrato de trabalho é bem definido.

c) A última diferença já está compreendida na incondicionalidade, mas convém destacá-la: trata-se da gratuidade. O trabalho escravo é naturalmente gratuito.

O senhor é proprietário dos escravos, e portanto de seu trabalho. Qualquer que seja o valor desse trabalho, o senhor só deve ao escravo teto e alimento. A locação de serviços, pelo contrário, é sempre remunerada. E o empregado é livre de recusar o emprego, desde que o salário não lhe convenha.

Feitas estas distinções, São Luís Grignion pergunta o que somos em relação a Deus: escravos ou locatários de serviços? E prova que, no sentido de que o domínio de Deus sobre nós é perpétuo, pleno e gratuito, somos escravos.

Deus tem de fato sobre nós um tal domínio, que se nos ordenar qualquer coisa, devemos executá-la por mero amor, de tal maneira que o faríamos, ainda que não recebêssemos d'Ele o Céu como recompensa.

Os diversos tipos de escravidão


São Luís Grignion examina em seguida os diversos modos pelos quais alguém se torna escravo:

Nossa Senhora de Coromoto, Venezuela, padroeira da América Latina
Nossa Senhora de Coromoto, Venezuela,
padroeira da América Latina
1) Primeiramente, torna-se escravo por natureza. É o caso de nossa escravidão para com Deus. Somos escravos porque somos criaturas: toda criatura, pelo fato de ser criatura, é naturalmente escrava de Deus Criador.

Imaginemos um escultor que toma argila e nela esculpe uma estátua. Imaginemos ainda que a estátua comece a se movimentar. Entende-se que ela pertence, por natureza, àquele que a fez. Devendo o seu ser ao estatuário, a ele deve obedecer.

Assim é o homem, por natureza, escravo de Deus. Todas as criaturas – Nossa Senhora, os Anjos, os demônios – são, por natureza, escravas do Criador.

2) Além desta, existe a forma de escravidão por constrangimento. Quando um rei entra em um país que o agrediu injustamente, e o domina – diz nosso Santo – pode, em certos casos, reduzir seus habitantes a escravos.

Não serão escravos por natureza ou de livre vontade, mas por constrangimento, porque o rei vencedor lhes impôs sua lei. Os demônios são escravos de Deus, por natureza e constrangimento.

Revoltaram-se contra Deus, e não respeitaram Seus direitos. Deus então interveio, e à escravidão de direito, em virtude da natureza dos demônios, somou uma escravidão por constrangimento, pela força.

3) Há, por fim, uma terceira forma de escravidão: por livre vontade. Admitamos que alguém, por admirar muito a outrem, se lhe dê por escravo.

É um ato voluntário, pelo qual uma pessoa renuncia a toda sua liberdade, a todo o direito sobre si, e se coloca irrestritamente nas mãos de outrem. É uma escravidão por livre vontade.




Seremos escravos, ou de Deus ou do demônio


Nossa Senhora do Carmo resgata almas  do Purgatório. Brooklyn Museum. Escola de Cuzco, Peru.
Nossa Senhora do Carmo resgata almas  do Purgatório.
Brooklyn Museum. Escola de Cuzco, Peru.
Parece-me conveniente assinalar o trecho abaixo. Consubstanciando ele uma visão tão contra-revolucionária das coisas, convém que se saiba que é opinião de um santo, e não invenção nossa.

“Antes do batismo, éramos escravos do demônio; o batismo nos fez escravos de Jesus Cristo. Importa, pois, que os cristãos sejam escravos, ou do demônio ou de Jesus Cristo” (tópico 73).

Considere-se um formigueiro humano visto por um olhar teológico, do alto de um arranha-céu. É forçoso pensar: todos aqueles homens são escravos, ou de Deus ou do demônio.

Portanto, eu também o sou, não há outra alternativa. Nada, pois, mais natural do que a seguinte pergunta, para se conhecer alguém: é escravo de Deus ou do demônio? Pois escravo ele o é, necessariamente.

Em termos de doutrina católica, como se demonstra isto? Podemos não querer tributar a Deus a escravidão voluntária.

Mas, com a escravidão por natureza, tal não se pode dar, pois escravos de Deus nós o somos, ainda que à maneira dos demônios. Pois a desobediência à Lei de Deus nos torna escravos do demônio, por várias razões:

a) Damo-nos ao demônio, porque quem rompe com Deus se entrega ao demônio;

b) Obedecemos ao demônio, porque seguimos a lei da carne, e a lei da carne é a lei do demônio;

c) Somos escravos do demônio também num sentido especial. O homem mau muitas vezes quereria o bem, mas não tem coragem e nem vontade de o praticar; pois sua vontade está culposamente manietada, está atada, está ligada por um vínculo que o impede de fazer o que quereria.

É esta uma forma de escravidão – a escravidão a seus vícios. Ou seja, é a escravidão ao demônio, pois quem se escraviza a seus vícios é escravo de Satanás.

Conclui-se então que todo homem ou é escravo do demônio ou é escravo de Jesus Cristo.

Algumas aplicações dessa escravidão à vida espiritual


Nossa Senhora de La Salette
Nossa Senhora de La Salette
Temos bem presente esta noção de que nós, assim como todos os homens, somos escravos de Deus ou do demônio, e de que nisto não há meio termo? Compreendemos que essa classificação dos homens nestes dois grupos de escravos corresponde bem ao espírito contra-revolucionário?

Aprofundando, poderíamos rememorar episódios de nossa vida: fomos sempre escravos de Deus? Ou às vezes o fomos do demônio?

Ainda hoje, qual o nosso estado atual? De quem somos escravos no momento?

Percebemos que estes princípios que São Luís Grignion lembra, sobre a escravidão, determinam uma atitude vigorosa e intransigente perante a vida, parecida com a que os contra-revolucionários preconizamos? Ou temos o hábito mental de viver despreocupadamente, como se ninguém fosse realmente escravo de Deus ou do demônio?

Temos o hábito de julgar a própria palavra “escravo” enérgica demais, e que bastaria dizer-se “amigo” ou “simpatizante” de Deus? Julgamos que chamar um homem reto de “escravo de Jesus Cristo” é enérgico demais? Achamos que não se deve falar nesses termos?

Não sendo de Deus, por que logo de uma vez “do demônio”? Não pode haver uma zona cinzenta entre esse branco e esse preto? A vida não será muito mais agradável se se considerar que existe essa zona cinzenta?

Para São Luís Grignion e para a doutrina católica, no entanto, não é assim. Precisamente a zona cinzenta não existe. Tão somente a branca ou a preta.

Só se pode pertencer a uma ou à outra. E é precisamente em função disto que muitas das atitudes contra-revolucionárias se explicam.

A plena aceitação dessa doutrina de escravidão, entretanto, não consiste apenas numa convicção doutrinária, ela gera um estado de espírito, uma atitude mental: o que se trata de adquirir é uma posição habitual perante os outros, de quem se sabe escravo e tem aos outros na conta de escravos.








Por que ser escravo de Maria, que é escrava de Deus?


Anunciação. Ambrogio Lorenzetti (1290 - 1348)
Pinacoteca Nazionale, Siena, Itália.
Por que ser escravo de Maria, em vez de o ser de Nosso Senhor Jesus Cristo – pergunta-nos São Luís Grignion – já que Nossa Senhora é também escrava? Maria Santíssima não diz de si “ecce ancilla Domini”?

Por que, então, ser escravo d'Ela? Sendo a Virgem Santíssima escrava, pode ter escravos? Que sentido racional tem isso?

Inicialmente São Luís Grignion faz uma introdução muito inspirada a respeito das relações de Nossa Senhora com Nosso Senhor. Embora não mencionando aquelas palavras de São Paulo “não sou eu que vivo, é Jesus Cristo que vive em mim” (Gal. 2,20), é este o pensamento que o santo desenvolve, mostrando que Jesus Cristo vive numa pessoa quando ela se santifica.

E quando atinge a santidade, já não é aquela pessoa que vive, mas Jesus Cristo que vive nela.

Ora, sendo Nossa Senhora absoluta, inteira e perfeitamente santa, é também absoluta, inteira e perfeitamente Jesus Cristo que vive n'Ela.

Estabelecer uma separação entre Maria e Jesus Cristo, de maneira a ser possível admirá-La sem admirar Jesus Cristo, ou cultuá-La sem cultuar a Jesus Cristo, segundo São Luís Grignion é o mesmo que procurar separar o calor da luz, numa chama que brilha e que ao mesmo tempo é quente. São elementos que se podem distinguir, mas não se separar.

Os pares de Carlos Magno para nossos modelos – Podemos tornar mais claro o exposto com algumas comparações.

Segundo a lenda ou a História, os pares de Carlos Magno não foram apenas os sustentáculos que o auxiliaram a realizar a grande obra da defesa da Igreja e da fundação de um império cristão, mas homens formados por ele mesmo para isto.

Guerreiros surgidos ao longo de sua vida de rei-guerreiro, os pares se destacavam acima de outros guerreiros, pois ele os foi formando para a luta, para a batalha e para a guerra, de maneira a assimilarem seu espírito cavalheiresco, suas ideias e seus princípios, e os aplicarem em suas próprias vidas.

Podemos então legitimamente dizer que, se um par de Carlos Magno absorveu, em toda a sua personalidade, todos os princípios de seu chefe, a análise da personalidade desse par é útil e interessante para quem queira conhecer Carlos Magno, pois foi uma reprodução viva daquele imperador.

Nossa Senhora em marfim.
Nossa Senhora em marfim.
Ele aplicou, em circunstâncias já diferentes, os princípios que Carlos Magno ensinou e viveu. Assim, para se conhecer Carlos Magno a fundo, há vantagem em conhecer a história de seus pares.

São outros tantos Carlos Magno, através dos quais poderemos penetrar melhor no conhecimento da obra, da mentalidade e da vida do grande imperador.

Enfim, isto é tão verdadeiro que, se não tivéssemos nenhum documento sobre Carlos Magno, mas conhecêssemos a história dos seus pares, através dela poderíamos saber o que ele foi.

O mesmo se dá com os santos em relação a Nosso Senhor. São alter Christus. E estas considerações são muito mais verdadeiras no caso dos santos, pois o santo pratica a virtude heroica, e imita portanto a Nosso Senhor em toda a medida do que lhe é dado imitar.

E mais verdadeiras são ainda em se tratando de Nossa Senhora, que é em toda plenitude alter Christus. A invocação Speculum Justitiæ, da Ladainha Lauretana, neste sentido é muito significativa, porque o espelho contém a imagem do original de modo insuperavelmente fiel, e tem a vantagem de não ter em si outra imagem senão aquela que ele reflete.

Numa tela podemos distinguir a pessoa retratada do aspecto material da tela que entrevemos na pintura, mas o espelho só mostra a face daquilo que nele se reflete.

Sendo Nossa Senhora Speculum Justitiæ, amando-A, admirando-A e reverenciando-A, estaremos amando, admirando e reverenciando a própria Justiça, ou seja, a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Por que ser mais especialmente escravo d'Ela? São Luís Grignion nos sugere uma comparação popular muito significativa:

Num reino absoluto – uma monarquia oriental, por exemplo – todos são, de certo modo, escravos do rei; mas ele pode ter certos escravos mais especialmente a serviço da rainha; são escravos que ele dá para que a rainha mande neles mais particularmente.

Assim acontece também na Igreja Católica e no universo. Sendo todos os homens escravos de Deus por natureza ou por conquista, e também, de algum modo, escravos por natureza de Nossa Senhora, é possível a alguns oferecerem-se mais especialmente para servi-La, para glorificá-La, para serem Seus escravos e combaterem por Ela.

São estes os chamados para a devoção especial que São Luís Grignion recomenda em seu “Tratado”.




A Mediação Universal de Nossa Senhora na obra de São Luís Grignion


Nossa Senhora do Carmo tirando almas do Purgatório. Até grandes santos podem ter passado por ele, para pagar alguma culpa. Se até eles passaram é porque o homem tem tendências para o mal.
Nossa Senhora do Carmo tirando almas do Purgatório.
Até grandes santos podem ter passado por ele, para pagar alguma culpa.
Se até eles passaram é porque o homem tem tendências para o mal.
Pintura anônima da escola de Cuzco, Peru no Brooklyn Museum

Cap. II – Continuação


Comentaremos a seguir a parte do “Tratado da Verdadeira Devoção” em que São Luís Grignion trata mais a fundo da Mediação Universal de Nossa Senhora.

Mostra-nos São Luís Grignion que o homem necessita constantemente das graças de Deus. O Antigo e o Novo Testamento são abundantes em textos nos quais se mostra que a graça de Deus, os favores naturais e sobrenaturais que Ele nos concede, devem ser pedidos até com insistência pelos homens.

Quem pede graças, obtém-nas; quem não as pede não as obtém.

A eficácia do pedido, por sua vez, está na razão das disposições da pessoa que pede. As boas disposições têm como consequência a deferição dos pedidos. As más prejudicam-nos.

É necessário tomar-se bastante cuidado com as palavras, para não simplificar a questão. O que ficou dito não significa que, sempre que uma pessoa não esteja em disposições convenientes, o seu pedido não é atendido.

As disposições más, em si mesmas, são condições que tornam o pedido mais difícil de ser atendido. A misericórdia de Deus, entretanto, é tão grande que vemos no Evangelho até um pedido do demônio – que aliás não é oração – ser atendido por Nosso Senhor.

Estavam os demônios sendo por Ele expulsos de uma pessoa, e pediram para entrarem nuns porcos. O desejo foi atendido, e a manada precipitou-se nas águas (cfr. Mc. V, 1-20). Até um pedido desses pode ser atendido.

O que queremos deixar claro, no entanto, é que o êxito do pedido está muito intimamente ligado com as disposições de quem pede.

Por isso mesmo há um trecho do Eclesiástico que nos manda, antes da oração, prepararmos o nosso espírito (cfr. Ecli. XVIII, 23).

Sendo esta a doutrina, formula-se o seguinte problema: possuímos nós as disposições mediante as quais nossos pedidos possam ser atendidos?

Considerada a perfeição infinita de Deus – consideradas, portanto, a pureza e a santidade infinita de Jesus Cristo e, de outro lado, nossas fraquezas, misérias e imperfeições – que condição temos para sermos atendidos?

Altar pelas almas do Purgatório. Igreja de São Francisco, Pontevedra, Espanha. Há um fundo de maldade em nós que nos leva a pecar. O Purgatório é o local onde as almas bem-aventuradas são purificados por penas que tinham a pagar.
Altar pelas almas do Purgatório. Igreja de São Francisco, Pontevedra, Espanha.
Há um fundo de maldade em nós que nos leva a pecar. O Purgatório é o local
onde as almas bem-aventuradas são purificados por penas que tinham a pagar.
Isto, por sua vez, se prende a um outro problema: se considerarmos que os homens são habitualmente ruins, que seu fundo é mau, e que o homem muito dificilmente se torna bom, chegamos à conclusão de que suas disposições lhe devem inspirar a maior desconfiança, no que diz respeito ao deferimento de seus pedidos.

Mas se tivermos a ilusão de que o homem é habitualmente bom, e de que seu fundo também o é, pois a maior parte dos homens é boa, devemos concluir que a maioria dos homens tem as condições necessárias para que seus pedidos sejam atendidos.

Nosso fundo de maldade e a doutrina da mediação


A necessidade de haver mediadores entre Deus e os homens está intimamente relacionada com este ponto fundamental: o homem, em sua natureza, é habitualmente mau ou bom? Costuma proceder bem ou mal?

O purgatório é uma das respostas. Poucas coisas são tão ricas em sabedoria, e tão dignas de serem analisadas, quanto a doutrina católica a respeito daquele lugar de expiação.

Nela há uma como que contradição: a alma que morre, e que vai para o purgatório, é uma alma justa, de uma pessoa boa, para a qual Deus prepara a felicidade eterna numa mansão de delícias perfeitas; mas a estes justos faz Deus passar pelo banho purificador de tormentos terríveis, inexprimíveis.

As revelações privadas mais dignas de crédito, de almas que têm manifestado o que sofreram no purgatório, nos dão ideia de sofrimentos por vezes terríveis e de duração extraordinária.

Tanto isso é verdade, que a Igreja nos manda rezar insistentemente pelas almas do purgatório. Como elas sofrem muito, devemos conseguir, com nossas orações, que sejam libertadas dos sofrimentos que as afligem.

Como se compreende que Deus, tão bom, tão misericordioso, que ama essas almas que até já estão salvas, as sujeita a tais tormentos purificadores?

Só podemos compreendê-lo se admitirmos, nos bons ou mesmo nos ótimos, defeitos que ferem a vista infinitamente pura – mais bem poderíamos chamar de vista infinitamente exata, infinitamente precisa, infinitamente intransigente – de Jesus Cristo.

Por isso Deus, antes de receber estas almas, quer purificá-las.




Fatos que mostram a necessidade de protegermos de nosso fundo de maldade


Até a grande Santa Teresa de Jesus teria passado pelo Purgatório para purgar faltas menores. Imagem do mosteiro da, Encarnação de Ávila, capela da Transverberação.
Até a grande Santa Teresa de Jesus teria passado pelo Purgatório
para purgar faltas menores.
Mosteiro da Encarnação de Ávila, capela da Transverberação.
Em uma revelação a Santa Teresa de Jesus, Nosso Senhor Jesus Cristo lhe apareceu mostrando umas uvas muito bonitas; tendo ficado maravilhada, ela perguntou a Nosso Senhor o que significavam.

Ao que Nosso Senhor observou: “Preste mais atenção”.

Ao fazê-lo, teve ela a impressão de que, à medida que fixava sua vista sobre as uvas, estas iam mudando de aspecto, tornando-se encaroçadas e feias.

Santa Teresa pediu que Nosso Senhor lhe explicasse o significado disso, e soube que se tratava da sua própria alma.

Vista no primeiro aspecto, a impressão era maravilhosa; examinada porém com cuidado, começavam a aparecer irregularidades e imperfeições, e aos olhos de Deus pareciam feias e deterioradas.

Assim são as almas dos homens. Vistas por nós, que não temos o olhar de Deus, podem até parecer muito bonitas.

Mas vistas pelo Altíssimo, parecem-se às uvas feias. Esta a razão por que Deus toma as uvas venenosas e as faz passar pelas grandes câmaras reformadoras do purgatório, para que se apresentem condignamente ao Seu olhar por toda a eternidade.

Outras revelações privadas, deste mesmo jaez, inculcam a ideia de que os maiores santos têm, por vezes, defeitos e imperfeições de que custaram muito a se purificar, devendo por isso passar pelo purgatório, para os expiar.

Tais fatos nos mostram bem como o homem é fundamentalmente tendente para o mal.

A hagiografia nos demonstra o mesmo. Os santos tiveram muito que lutar para conseguir o heroísmo.

Toda vida de santo, quando bem escrita, nos mostra a virtude como extraordinariamente difícil, a santidade como um estado heroico no verdadeiro sentido da palavra, um estado incompatível com a moleza, com a preguiça, com o “deixar para amanhã”, incompatível com a sensualidade, com o orgulho, com o amor-próprio.

Deduz-se assim que, se ao homem custa tanto o santificar-se, é porque tem grande apego às coisas opostas à santidade.

Nos filhos de Eva, concebidos no pecado,
há uma força muito grande que puxa para os piores defeitos.
Detalhe de 'Cristo ante Pilatos' de Hieronymus Bosch (1450-1516).
Há nele uma força violentíssima, que o leva constantemente para o mal: “Qui se extimat stare, videat ut non cadat”. “Aquele que crê estar de pé, tome cuidado para não cair” (I Cor. X, 12).

A noção da existência de um fundo de maldade no homem está na base de inúmeras atitudes contrarrevolucionárias.

Somos favoráveis a todas as escolas de vida espiritual que desconfiem muito do homem, e que comecem por nos ensinar a desconfiar de nós mesmos.


“Aquele que crê estar de pé, tome cuidado para não cair” (I Cor. X, 12).


Não basta estar de pé, olhando para os que caem e vangloriando-se por não cair. É necessário estar atento para perceber a próxima cilada da nossa maldade.

Qualquer homem pode cair a qualquer momento.

Devemos ter, portanto, para conosco, uma grande desconfiança, e estar fazendo uma constante análise do nosso próprio interior, para sabermos o que pode surgir do fundo de nossa personalidade, dos porões amplos, profundos e obscuros que existem na mente de cada homem.

Esta análise faz parte da estrutura da mentalidade contrarrevolucionária. Assim como pensarmos de nós, assim deveremos pensar dos outros.

Se a perseverança exige de mim esta vigilância contínua, devo desconfiar que a perseverança dos outros o exige também. Assim sendo, devo considerar que principalmente os não vigilantes podem cair.

O grau de vigilância é, pois, um índice para a confiança que se deve depositar nas pessoas.

Posto o princípio de que o homem tem uma tendência enorme para o mal, e com toda facilidade pode ser movido por maus ímpetos, não devemos nos espantar de presenciarmos atos péssimos.

E não devemos também vacilar em nos perguntarmos se há motivos para supor intenções péssimas neste ou naquele.

Não devemos levantar esta suspeita sem motivo razoável, mas devemos ter o espírito facilmente propenso a perguntar se há motivos destes.

Nós precisamos de uma intercessora poderosíssima para vencermos
nossas más propensões e nossas quedas no pecado.
Madonna della Cintola. Benozzo Gozzoli (1421 - 1497).
Se o homem tem uma tendência tão forte para o mal, e as tendências fortes facilmente vencem, é fácil que se entregue ao mal.

Se toda esta concepção é verdadeira, a necessidade de um mediador e de uma mediadora junto a Deus é enorme.

Aquele que é habitualmente péssimo, ou recorre a alguém que é muito bom ou está perdido, uma vez que as boas disposições são necessárias para que as suas orações sejam eficazes.

As concepções contrarrevolucionárias sobre o homem estão, portanto, na raiz da própria doutrina da Igreja a respeito da mediação.

O que diz dos homens São Luís Grignion?

“Nossas melhores ações são ordinariamente manchadas e corrompidas pelo fundo de maldade que há em nós” (tópico 78).

A frase é dura. Nossas melhores ações são manchadas e corrompidas ordinariamente, habitualmente, isto é, não só algumas vezes, mas quase sempre.

É o oposto da concepção liberal, que considera que, no fundo, somos bons; apenas neste pontinho ou noutro falhamos.

Pelo contrário, nós somos maus por natureza; num pontinho ou noutro podemos ser bons. Esta é a visão que está em São Luís Grignion.

É algo de muito positivo a respeito do homem e da facilidade com que peca.





A consciência da própria maldade, condição indispensável para a santificação


São Luís Maria Grignon de Montfort institui o ramo feminino montfortiano.
Saint Laurent-sur-Sevre.
Continua o grande Santo mariano:

“...Quando se despeja água limpa e clara em uma vasilha suja que cheira mal, ou se põe vinho numa pipa cujo interior está azedado por outro vinho que aí antes se depositara, a água límpida e o vinho bom adquirem facilmente o mau cheiro e o azedume dos recipientes.

“Do mesmo modo, quando Deus põe no vaso de nossa alma, corrompido pelo pecado original e pelo pecado atual, suas graças e orvalhos celestiais ou o vinho delicioso de seu amor, estes dons ficam ordinariamente estragados ou manchados pelo mau germe e mau fundo que o pecado deixou em nós; nossas ações, até as mais sublimes virtudes, disto se ressentem.

“É, portanto, de grande importância, para adquirir a perfeição – que só se consegue pela união com Jesus Cristo – despojarmo-nos de tudo que de mau existe em nós.

“Do contrário, Nosso Senhor, que é infinitamente puro e odeia infinitamente a menor mancha na alma, nos repelirá, e de modo algum se unirá a nós” (tópico 78).

“Para despojarmo-nos de nós mesmos, é preciso conhecer primeiramente e bem, pela luz do Espírito Santo, nosso fundo de maldade, nossa incapacidade, nossa inconstância em todo tempo, nossa indignidade de toda graça e nossa iniquidade em todo lugar” (tópico 79).

O liberalismo e a doutrina montfortiana do fundo da maldade – Um devoto de São Luís Grignion, considerando uma multidão de transeuntes de uma grande cidade, poderia dizer: “quantos corpos corruptos e alimentados no pecado”.

Um católico liberal o olharia como a um louco. Para os filhos das trevas de nosso século, tudo é muito bom, todos os homens são retos, exceto os que denunciam o erro e o mal.

Essa teoria, entretanto, é conforme à doutrina católica, consoante declaração da própria Igreja.

Se essas palavras não fossem de um santo, diriam tratar-se de concepções engendradas num auge de entusiasmo, devendo ser entendidas “cum grano salis”.

São, entretanto, considerações a respeito do gênero humano, feitas pelo maior teólogo de Nossa Senhora.

Os católicos liberais de nossa época, negando essa doutrina do fundo de maldade dos homens, não aceitam também que possa haver uma conspiração contra a Igreja.

Conspiração essa que se manifesta através de associações que propulsionaram e propulsionam a Revolução, recrutando seus adeptos entre os próprios homens.

Em certo sentido, pode-se afirmar que a conspiração contra a Igreja é quase de geração espontânea, por assim dizer forçosa, e quase inevitável.

O fundo de maldade que há no homem leva muitos a se unirem
e conspirarem contra a Igreja e contra a Civilização Cristã.
Sendo os homens como os descreve São Luís Grignion, seria inconcebível que, entregando-se ao pecado, não se unissem para fazer o mal. Seria inacreditável haver bilhões de homens, todos ruins, e que não tivessem a iniciativa de se coligarem para fazer e promover o mal.

Esse princípio abre avenidas para a doutrina contrarrevolucionária, e é a raiz da Mediação Universal de Nossa Senhora. Quanta harmonia há, portanto, nesses pensamentos!

O nosso fundo de maldade e o do próximo

“... Nossa alma, unida ao corpo, tornou-se tão carnal, que é chamada carne: `Toda a carne tinha corrompido o seu caminho' (Gn 6,12). Toda a nossa herança é orgulho e cegueira no espírito, endurecimento no coração, fraqueza e inconstância na alma, concupiscência, paixões revoltadas e doenças no corpo” (tópico 79).

É a nossa descrição, é o fundo de cada um de nós. Somos nesta sala nove pessoas, cujo fundo não é senão isto. Portanto, também o meu. Nossa vida espiritual deve ser baseada na convicção de que isto é assim.

Ou nos encarceramos em vigorosas jaulas espirituais e nos policiamos energicamente, ou praticamos os piores crimes. Esta é a nossa condição até à morte.

Um minuto antes de morrermos, poderemos cair nos maiores horrores.

Ora, se cada um de nós necessita lembrar-se constantemente disso, para agir com o necessário vigor a fim de cumprir o seu dever, o mesmo acontece com o próximo. Isto nos leva a uma interrogação: estão todos os homens igualmente convencidos disto?

Em caso negativo, se não tomarem providências no sentido de dominar suas más tendências, suceder-lhes-á o mesmo que a nós, se não vigiarmos.

Embora estas sejam verdades de clareza solar, há muitos que não querem ser vigilantes, e nem sequer querem ver o problema. Esses, em geral, usam “slogans”, como por exemplo: “agir com grandeza de espírito”; “faz bem usar uma certa confiança em si mesmo”.

A estes, devemos responder que a grandeza de espírito não é isto, e que estão sujeitos aos maiores riscos. E merecem, pois, a maior desconfiança de nossa parte os que se deixam iludir por tais “slogans”.

Cada um de nós tem dentro de si como que um grande malfeitor; trata-se de saber se está preso ou solto. Se ele estiver solto, dominará a alma, não há alternativa. Esta a realidade, por mais dura que possa parecer.

Temos dentro de cada um de nós um facínora – Qual a decorrência desta doutrina? Quando alguém está confortavelmente como que deitado dentro de si mesmo, percebe-se claramente que abriu as comportas para o grande malfeitor que, como em cada um de nós, nele há.

Que juízo fazer a seu respeito?

Que ele é um malfeitor. Por quê?

Porque, se nós fizéssemos o mesmo, seríamos malfeitores. Por que não o seria ele? Pode parecer duro concluir assim, mas é a mais pura realidade.

Madonna del Soccorso, Ascoli Satriano, Itália.
Madonna del Soccorso, Ascoli Satriano, Itália.
Poder-se-ia contra-argumentar que tais sistemas, em que o homem pensa ou presta atenção em si, não são bons, pois o homem deve andar guiado pelo amor de Deus.

Realmente devemos ser guiados pelo amor de Deus. Mas, para isto, é necessário que não sejamos guiados por nossos vícios, o que sem vigilância não se consegue.

“...Somos naturalmente mais orgulhosos que os pavões” (tópico 79).

Nada mais verdadeiro. Não há quem não goste de elogios.

É preciso dominar-se para não procurá-los, pois quando se consente neste gosto censurável, acaba-se procurando-os, mais discretamente ou menos.

Há até os que parecem andar com uma tabuleta na testa: “elogiem-me”. É algo horrível, mas real.

Fala-se muito da vaidade feminina, mas na realidade as mulheres são não raramente mais ingênuas, deixando-a transparecer mais. Os homens ocultam-na melhor.

Dizer que sejam menos vaidosos, é certamente falso.

Os homens gostam de chamar a atenção sobre si, a tal ponto que, não encontrando outro meio, chamam-na até por seus defeitos.

Os recursos do amor próprio são inumeráveis; um pavão nada é, em comparação com as complexidades da vaidade humana.

“...mais apegados à terra que os sapos”.

A imagem parece atroz. Poderíamos entretanto falar em serpentes, que a comparação seria muito mais verdadeira.

Com todo o peso da nossa personalidade, tendemos para a vida gostosa e prosaica. Cada qual a concebe a seu modo: “vidinha”, “vidão”, “semi-vidinha” ou “semi-vidão”; aventura, sonho, romance, realidade... o que a imaginação sugerir.

Mas, naturalmente, é para isso que tendemos, de todos os modos imagináveis.

“... mais invejosos que as serpentes”.

É inegável. Não há quem possa negar que já sentiu a picada da inveja.

“... mais glutões que os porcos”.

É preciso reconhecê-lo.

“... mais coléricos que os tigres”.

Os menos coléricos na aparência têm, por vezes, cóleras frias intensas. São capazes de acalentar ímpetos de vingança por anos a fio. Salvo empecilhos colocados pela preguiça, serão sempre capazes de se vingar.

Detalhe de 'A Nau dos Insensatos'.
Hyeronimus Bosch (1450-1516)
Só por moleza deixam de ser vingativos, jamais por virtude, pois quando o bicho-preguiça sucede ao tigre, amolece suas garras, tornando-se gato inofensivo.

“... mais preguiçosos que as tartarugas”.

Quanto é verdade! Preguiça de pensar, por exemplo.

“... mais fracos que os caniços e mais inconstantes do que um catavento. Tudo que temos em nosso íntimo é nada e pecado, e só merecemos a ira de Deus e o inferno eterno” (tópico 79).

Somos pigmeus em relação à vocação – Se ousássemos afirmar, a pseudo-santos de nossa época, que eles são tudo isso que São Luís Grignion diz dos homens, eles negariam peremptoriamente, pois não estão absolutamente convencidos de que são assim. “Todos são tão bons...” – exceto os contrarrevolucionários, evidentemente...

“Depois disto, por que admirarmo-nos de ter Nosso Senhor dito que quem quisesse segui-lo deveria renunciar a si mesmo e odiar a própria alma? Que aquele que amasse sua alma a perderia, e quem a odiasse se salvaria? (Jo 12,25)” (tópico 80).

Eis a linda aplicação da expressão “odiar a sua alma”. Quer dizer conhecer os seus defeitos e odiá-los.

Realmente, se amarmos a nossa alma, se dissermos a nós mesmos “como somos bons!”, estaremos mais péssimos que nunca. Mas se, pelo contrário, odiarmos nossa alma, tudo será diferente.

Se quisermos estar à altura do que Nosso Senhor pede de nós, reconheçamos que somos péssimos, que pouco fizemos, e que há ainda muito mais a fazer no caminho de nossa santificação.

Frequentemente encontramos em nós outro estado de espírito: “Já sou bem bom, posso parar e respirar, pois em relação aos outros estou no alto de uma montanha; vou descansar um pouco”.

Quem raciocina que é bom, em comparação com os outros, está perdido.

Em nosso dias, um homem que peca mortalmente uma vez ou outra, e que vai para o inferno, também é “bem bom” em comparação com os outros. Este homem pode ser honesto, bom filho, etc.

Mas pode ir para o inferno, porque peca uma vez ou outra contra a castidade. É um demônio em estado de pecado grave, no entanto se considera “bem bom” em comparação com os outros.

Se nos habituarmos à perspectiva do que deveríamos ser, e não do que somos em comparação com os outros, caminharemos céleres. Se não o fizermos, estagnaremos.

Devemos, pois, renunciar à ideia de que somos gigantes. Em face da vocação que cada um recebe, somos míseros pigmeus.

Necessitamos portanto de Nossa Senhora como Mediadora, para suprir nossas imperfeições e podermos nos apresentar diante de Deus.

Se assim não for, não haverá para nós solução. A necessidade da Mediação de Nossa Senhora se impõe.





Escolha da verdadeira devoção à Santíssima Virgem


Capítulo III


Este capítulo do livro de São Luís Grignion de Montfort apresenta um aspecto de particular importância para nós.

Uma das causas de estranheza de alguém que tome contato com contra-revolucionários autênticos está na posição perante os problemas religiosos.

Com efeito, uma série de problemas que nos meios católicos comuns costumam ser considerados sem muita reflexão, são considerados muito raciocinadamente, dentro dos hábitos mentais, do modo de agir e de pensar dos contrarrevolucionários.

O modo de considerar determinadas devoções, por exemplo, é muito significativo.

Alguém resolve espalhar a devoção a São Judas Tadeu, ou a devoção a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Em geral tais resoluções são expressões de sentimentos puramente individuais.

Uma pessoa recebeu uma graça de determinado santo – ou ao menos julga ter recebido – e, movido por um sentimento de gratidão, empreende uma campanha com o fim de divulgar a sua devoção.

Existe certo “do ut des” ou “facio ut facias” nestas atitudes. Como tal santo me fez um favor, divulgo a devoção a ele.

Estou assim aumentando o meu “crédito”, com melhores possibilidades de obter futuros favores.

Não se pode afirmar que tal modo de agir seja sempre mau. Mas é em função disto que certos católicos, não raras vezes, organizam suas atividades de piedade.

Como é que muitos fiéis escolhem seu campo de devoção, de piedade? Há um conjunto de novenas, de bênçãos, que se estabeleceram ao longo de sua vida, fruto de certa rotina. Eles se apegam a elas, e ficam nisso.

Não há nada de propriamente raciocinado, ponderado à luz da Fé, planejado em relação aos atuais interesses da Igreja e das almas. Ora, é evidente que, se o homem pode tornar racionais as suas ações, ele as deve tornar.

Diante da atitude com que um certo número de fiéis costumam considerar suas atividades, é muito raro notarmos a preocupação de analisá-las, de montar um quadro completo, de considerar suas próprias falhas, de traçar uma linha de conduta coerente, inteligente, ordenada.

Quando alguém entra em contato com alguma família de almas contrarrevolucionária, nota uma posição diversa.

Nota análise – análise exata, e até às vezes aguda – de determinadas falhas, e um sistema de ação calculado para sua correção; encontra uma atitude de apostolado, e até de piedade, refletida e ponderada.

Correntemente vê-se, pelo contrário, apenas atitudes de apostolado e de piedade inteiramente instintivas.

Esta diferença, creio ser muito sensível para quem passa de certos ambientes para o de uma família de almas verdadeiramente católica.

Nossa Senhora do Bom Sucesso, Quito, Equador.
Nossa Senhora do Bom Sucesso, Quito, Equador.

É próprio da verdadeira devoção denunciar e combater as falsas


Em seu apostolado, São Luís Grignion teve um conhecimento perfeito das falhas da devoção a Nossa Senhora, na sociedade para a qual pregava, e procurou insistir nos pontos necessários para fazer ruir aquelas falhas.

Na difusão da piedade, não se deixou levar pela rotina ininteligente.

Com a inteligência com que Vauban montava o cerco de uma praça para conquistá-la, São Luís Grignion agiu nos ambientes em que lhe era tolerado falar, como um homem sábio que quer conquistar a opinião pública.

Tal posição serve de antecedente para justificar a atitude racional – e não racionalista, o que seria completamente diferente – com que procuramos estudar estes temas.

Este é o ângulo pelo qual é interessante considerar a arte do livro de São Luís Grignion, que passamos a comentar.

Começa ele (tópico 90) por estabelecer o princípio de que o demônio age com muita inteligência na perdição das almas.

Assim como um falsário não falsifica moedas de metal ordinário como chumbo ou cobre, mas sim de ouro ou prata, assim também o demônio não falsifica devoções secundárias para a salvação das almas, mas prefere falsificar as de grande importância.

Isto explica que ele produza grande número de atitudes falsas na piedade mariana, ao contrário do que sucede com as devoções a outros santos, em que tais atitudes interessam muito menos para a salvação das almas.

Estamos aqui diante de uma série de pressupostos eminentemente contrarrevolucionários. Primeiramente, a ideia de que o demônio não ataca as almas procurando apenas arrancar-lhes a Fé, mas também procurando incutir-lhes formas de devoção falsas.

É um conceito muito contrarrevolucionário a ideia da falsificação da doutrina católica e da Religião, como meio empregado pelo demônio para perder os melhores.

São Luís Grignion parte deste princípio, de falsificação das moedas existentes em seu tempo, para afirmar a necessidade de se analisar as várias formas de devoções falsas em relação a Nossa Senhora. Veremos, aliás, que estas falsas devoções ainda existem em nossos dias.









Os falsos devotos e as falsas devoções à Santíssima Virgem


Os devotos críticos


“Os devotos críticos são, em geral, sábios orgulhosos, espíritos fortes e presumidos, que têm no fundo uma certa devoção à Santíssima Virgem, mas que vivem criticando as práticas de devoção que a gente simples tributa de boa fé e santamente a esta boa Mãe, pelo fato de estas devoções não agradarem à sua culta fantasia. Põem em dúvida todos os milagres e histórias narrados por autores dignos de fé” (tópico 93).

É uma atitude que encontramos com frequência. Os livros de piedade contam milagres de Nossa Senhora. Santo Afonso Maria de Ligório (27-9-1696 – 1º-8-1787, fundador da Congregação do Santíssimo Redentor, Doutor da Igreja e Padroeiro dos Moralistas e Confessores), por exemplo, no livro “Glórias de Maria”.

Há quem observe que as demonstrações teológicas de Santo Afonso são aceitáveis; naqueles milagres pode-se piedosamente crer, mas se pode também duvidar...

É verdade que, em princípio, se pode negá-los sem pecado; mas não é tão indiferente crer neles ou não.

Aqueles casos são francamente verossímeis; não podem ser negados sem uma razão positiva de dúvida.

Não há pois razão para duvidar – com satisfação, estuante de alegria – dos milagres relatados por Santo Afonso.

Em Aparecida do Norte se dá o mesmo. Há um sem-número de milagres – ou que correm como sendo milagres – feitos por Nossa Senhora.

Ao se propor certa vez a instalação de um bureau de constatação médica, para autenticar aquelas curas, alguém disse, sorrindo:

“O senhor preza realmente Nossa Senhora Aparecida? Se se colocar esse bureau de constatação médica aqui, cessará a auréola de Aparecida. Tudo não é senão crendice do povo”...

Se Nossa Senhora é capaz de praticar milagres, não é possível que haja, no meio das pretendidas curas, várias cujo caráter miraculoso se possa demonstrar?

Se Ela é Rainha do Céu e da Terra e Mãe de Deus, é perfeitamente possível. Não é então da glória d'Ela que sejam analisadas? É bem evidente que sim.

Outra manifestação de devoção crítica é um certo respeito humano ao culto das imagens de Nossa Senhora. Vai-se às igrejas e reza-se diante do Santíssimo Sacramento; mas parar, a fim de fazê-lo diante de uma imagem de Nossa Senhora, isto não.

Veem esta manifestação de piedade como uma devoção subsidiária. O homem simples, do povo, que tem a “fé do carvoeiro”, este se ajoelha para rezar; mas o homem culto contenta-se com a presença real, que é para ele a única coisa verdadeira. Imagens, ele as considera muletas da fé, para os que não têm espírito de religião desenvolvido.

Lutero foi adversário furibundo da devoção a Nossa Senhora.
Máscara mortuária. Museu de Halle Alemanha
É um estado de alma que faz parte do criticismo religioso, que diminui o âmbito da devoção a Nossa Senhora.

Os devotos escrupulosos


“Os devotos escrupulosos são aqueles que receiam desonrar o Filho, honrando a Mãe, e rebaixá-Lo se A exaltarem demais.

“Não podem suportar que se repitam à Santíssima Virgem aqueles louvores justíssimos que Lhe teceram os Santos Padres; não suportam sem desgosto que a multidão ajoelhada aos pés de Maria seja maior que ante o altar do Santíssimo Sacramento, como se fossem antagônicos, e como se os que rezassem à Santíssima Virgem não rezassem a Jesus Cristo por meio d'Ela.

“Não querem que se fale freqüentemente da Santíssima Virgem, nem que se recorra tantas vezes a Ela” (tópico 94).

Encontramos em nossos dias uma forma curiosa de devotos escrupulosos. Muito poucas são as pessoas que, nos meios católicos, sustentam esta falsa tese nos termos que São Luís Grignion a apresenta.

No entanto, a devoção a Nossa Senhora, em nossos dias, muito raramente é tão grande como a teologia recomenda.

Entre os próprios católicos, e mesmo entre os mais fervorosos, não se tem para com Ela a devoção que seria de se desejar.

A causa é a falsa idéia de que o culto a Deus sofre certa restrição com o culto à Santíssima Virgem. “Não convém – dizem eles – levar tão longe o culto a Nossa senhora”.

Devotos exteriores


São Luís Grignion chama devotos exteriores aos que se contentam com uma devoção meramente exterior a Nossa Senhora.

“...que recitarão às pressas uma enfiada de terços” (tópico 96).

Não raro vemos pessoas assim, rezando o rosário em uma velocidade assustadora.

“...e ouvirão sem atenção uma infinidade de missas, acompanharão as procissões sem devoção, farão parte de todas as confrarias sem emendar a vida, sem violentar suas paixões, sem imitar as virtudes desta Virgem Santíssima. Amam apenas o que há de sensível na devoção” (tópico 96).

Conhecemos muitas pessoas assim. Por exemplo senhoras, mães de família. Sabem que o marido é ateu, que o filho não pratica a religião, que a filha poderá acabar vivendo com um divorciado; para elas, nada tem grande importância.

Vão às procissões, cantam, seguram uma vela, fazem umas promessas a Nossa Senhora, compram-lhe objetos para Seu altar, e pouco se incomodam com a salvação do restante da família.

São almas para quem a devoção a Nossa Senhora consiste tão somente em práticas exteriores.

Não compreendem que estas devoções só têm valor na medida em que correspondam às disposições internas, de nada adiantando se forem somente externas.

Para se compreender a importância prática destas reflexões, basta considerar o lampejo enorme que teria o movimento católico, se todos os devotos exteriores de Nossa Senhora passassem a ter uma verdadeira devoção interior.

Nossa Senhora: no pórtico lateral
da abadia de Saint Denis em Paris

Os devotos presunçosos


“Os devotos presunçosos são pecadores abandonados às suas paixões, ou amantes do mundo que, sob o belo nome de cristãos e devotos da Santíssima Virgem, escondem o orgulho, ou a avareza, ou a impureza, ou a embriaguez, ou a cólera, ou a blasfêmia, ou a maledicência, ou a injustiça, etc” (tópico 97).

Sempre me lembro destas palavras, quando entro em certas igrejas e vejo vitrais de Nossa Senhora com a inscrição “oferta de Fulano”.

Ora, quantas vezes sabemos quem é o Sr. Fulano, qual a sua vida, que contraste há entre este pio donativo e a realidade que ali se oculta. Este homem, não raro, já está certo de ter ganho o céu por ter doado um vitral para Nossa Senhora.

Quanta temeridade e presunção aí se esconde! E quão grande é o número desses presunçosos!

Os devotos inconstantes


Os devotos inconstantes (tópico 101) são bem mais raros. Rezam à Santíssima Virgem, e, uma vez obtida a graça desejada, cessam de vez a devoção.

“Outros vão além: não obtido o favor, zangam-se, suscetibilizam-se e até blasfemam.

“Certa vez ouvi uma pessoa pedir a alguém de sua família que, para que tivesse menos azar, não mais rezasse por ela. É o devoto inconstante: blasfemou, por não conseguir o desejado. Sucedeu-lhe uma desgraça maior, e voltou a pedir orações: “Reze mais, pois está grave a situação!”

Os devotos hipócritas


“Há também falsos devotos da Santíssima Virgem, os devotos hipócritas, que cobrem seus pecados e maus hábitos com o manto desta Virgem Fiel, a fim de passarem aos olhos do mundo por aquilo que não são” (tópico 102).

Os devotos hipócritas também não são raros. Têm esta devoção para que outros tenham a impressão de que são mesmo devotos.

Os devotos interesseiros

São Luís Grignion chama de devoto interesseiro (tópico 103) aquele que pede a Nossa Senhora graças sobretudo de caráter temporal, ou que somente reza à Santíssima Virgem para conseguir favores, não por amor, somente desejando vantagens pessoais.

Dá-nos uma impressão constrangedora ver, nos lugares de peregrinação a Nossa Senhora, velas e ex-votos de pessoas que apenas pediram, com um furor insistente, graças temporais, o mais das vezes curas de doenças.

Graças espirituais, raríssimas vezes são pedidas. A pureza, a fé, o desapego, quem os pede? Não se vê. Apenas a cura de uma ferida, de uma moléstia incurável. E depois coloca-se o ex-voto.

A apetencia pelos bens espirituais é insignificante. O amor desinteressado a Nossa Senhora, quase nenhum.

Como vemos, encontramos em São Luís Grignion uma análise aguda dos defeitos da piedade de seu tempo, e um desejo de corrigi-los inteligentemente.

Não se trata de uma devoção inculcada apenas por rotina, às cegas, mas por alguém que conhecia profundamente o ambiente no qual agia. E sua ação tinha sempre, por isso, um cunho eminentemente contrarrevolucionário.

A seguir, São Luís Grignion passa a dar as verdadeiras características da devoção a Nossa Senhora: é interior; terna; santa; constante; desinteressada (tópicos 105 a 110). São predicados muito conhecidos de nossos leitores, que não requerem comentários.





A perfeita devoção à Santíssima Virgem ou a perfeita consagração a Jesus Cristo


Imaculado Coração de Maria, catedral de São Fernando, Santo Antônio, Texas, EUA
Imaculado Coração de Maria, catedral de São Fernando,
Santo Antônio, Texas, EUA

Capítulo IV

O sentido incondicional de toda verdadeira devoção


Deus pede de nós certos atos, e certos outros Ele os ordena. Assim, Ele ordena que cumpramos os Mandamentos. Mas certas práticas de virtudes, que não são de estrita obediência nem de preceito, mas de conselho, Ele apenas pede que as façamos.

A nossa consagração perfeita a Nossa Senhora ou a Deus Nosso Senhor – o que vem a ser a mesma coisa, pois a consagração a Ela só é feita para melhor nos consagrarmos a Ele – significa uma doação completa de nós.

Subentende, portanto, a disposição de em todas as coisas seguirmos, não só aquilo que é mandado, mas também o que é recomendado, o que é apenas aconselhado.

Consagrar-se significa dar-se – eis tudo. Aquele que se consagrou não conserva nada para si, ou então não se consagrou inteiramente; tê-lo-á feito parcialmente.

Quando São Luís Grignion fala de consagração a Nossa Senhora, entende que não só devemos oferecer a Ela tudo quanto é nosso, mas também renunciar em seu favor e em Suas mãos (nos termos e efeitos que adiante explicaremos) a tudo aquilo que não nos foi ordenado que renunciássemos.

Não se trata de oferecer a Ela somente a renúncia daquilo a que, por imposição dos Mandamentos, temos a obrigação de renunciar, mas tudo quanto é possível ao homem renunciar.

São Luís Grignion, neste seu método de consagração, toma a criatura humana, analisa tudo quanto nela há de renunciável, e mostra como isto deve ser colocado nas mãos de Nossa Senhora. Isto é essencial à perfeita devoção, isto é se devotar.

De que adianta alguém nos escrever “seu devotado amigo”, se depois pedimos uma qualquer atenção, e ele no-la nega? Esse devotamento não passa de uma fórmula. A devoção significa exatamente a entrega completa, a consagração total.

A verdadeira devoção a Nossa Senhora não consiste em vibrações nervosas, intensas, diante de uma Sua imagem, mas da séria, profunda, estável e coerente entrega nas mãos d'Ela, de tudo quanto temos de entregável (tópicos 121 a 126).

Nasce então o duplo problema:

a) em que termos essa entrega é feita?

b) por que é feita a Ela, e não diretamente a Nosso Senhor Jesus Cristo?

No capítulo IV, São Luís Grignion explica em que termos esta entrega é feita:

“É preciso dar-lhe nosso corpo com todos os seus membros e sentidos; nossa alma com todas as suas potências; nossos bens exteriores – que chamamos de fortuna – presentes e futuros; nossos bens interiores e espirituais, que são nossos méritos, nossas virtudes, nossas boas obras passadas, presentes e futuras. Numa palavra, tudo que temos na ordem da natureza e na ordem da graça” (tópico 121).

Consequências da Consagração


Madonna della Misericordia, Sano di Pietro (1406–1481)
Madonna della Misericordia, Sano di Pietro (1406–1481)
Para bem compreendermos o passo que esta entrega significa, e o que São Luís Grignion entende por “consagração”, vamos analisar as consequências que esta acarreta.

“Nosso corpo com todos os seus membros e sentidos” – Se damos a Nossa Senhora o nosso corpo com todos os seus sentidos e membros, a primeira coisa que neste corpo devemos fazer é a vontade d'Ela.

Compreende-se pois, desde logo, que não possamos transformar nosso corpo em instrumento de pecado.

Portanto, antes de mais nada, com relação ao corpo, o que se quer daquele que se consagra a Nossa Senhora é evidentemente a pureza.

De nada adiantará dizermos que nosso corpo Lhe pertence, se depois fizermos o contrário do que Ela dele quer.

É como se déssemos a alguém uma moeda, e depois a retirássemos para comprar um objeto para nosso próprio uso. Estaríamos evidentemente roubando à pessoa a quem presenteamos.

Mas isso não basta. Para darmos completamente nosso corpo a Nossa Senhora, é preciso agirmos em relação a este como Ela deseja.

Isto é, é preciso que o coloquemos completamente a Seu serviço, começando por respeitá-lo como algo que já Lhe demos, e que está sob Seu poder especial.

Além disso, quem se doou a Nossa Senhora nesta consagração deve abster-se de certas atitudes que estariam fora da delicadeza respeitosa para com seu próprio corpo.

Por exemplo, quanto ao modo de se apresentar. Sabemos que nosso corpo é marcado pelo estigma do pecado original, e devemos portanto ter o pudor, que é a vergonha ligada a essa condição.

Não devemos apresentar nosso corpo em estado de nudez nem de semi-nudez. São atitudes contrárias ao respeito que devemos ter ao nosso próprio corpo, como coisa dada a Nossa Senhora.

Por outro lado, se Lhe demos nosso corpo, ele deve ser um instrumento de apostolado a serviço d'Ela. Deve estar disposto a todas as canseiras, a aceitar o perigo de contágio de moléstias, a ser retalhado pela flagelação, se necessário.

Estar, enfim, disposto a tudo quanto for necessário, para que Nossa Senhora seja servida. Isto é verdadeiramente dar o nosso corpo a Maria Santíssima.

Mais ainda: se no nosso modo de vestir podemos adotar trajes mais revolucionários ou menos, devemos nos vestir do modo mais condizente com as ideias contrarrevolucionárias. Pois, como o nosso corpo passou a pertencer a Nossa Senhora, com isso estaremos prestando homenagem a Ela.

Estas são formas de proceder coerentes com a completa consagração do corpo à Rainha da Contra-Revolução.

Compreende-se bem a grandeza de todos os atos de sacrifício e de heroísmo à luz desta concepção. Devemos ter a disposição de aceitar, caso Nossa Senhora o prefira, a feiura à beleza, a doença à saúde, e aceitar que venha a enfermidade sobre nós, para com isto expiarmos pela Santa Igreja.

Não devemos, é claro, fazer oferecimentos imprudentes, mas ter esse ânimo. Nosso corpo deve estar à disposição de Nossa Senhora, e nossas palavras para com Ela devem ser as suas por ocasião da anunciação: “Ecce ancilla Domini, fiat mihi secundum verbum tuum” (Lc., I, 38).

Faça-se em cada um de nós segundo a palavra de Deus. O que Ela quiser a nosso respeito, desde já está oferecido, desde já está aceito, na medida das forças que Ela mesma nos der. Nosso corpo foi-Lhe dado de presente, foi-Lhe entregue.

Se vivermos esta consagração com esta profundidade, evidentemente ela se tornará imensamente séria e sublime. A devoção de São Luís Grignion é eminentemente grave e elevada.

Ninguém a deve fazer sem uma meditação de todas a consequências tremendamente sérias que ela traz. E ela só é tremendamente admirável por ser tremendamente séria.

Aquilo que não é muito sério, absolutamente não é admirável.

“Nossa alma com todas as suas potências” – Antes de mais nada, é necessário dizer que dar a nossa alma a Nossa Senhora significa dá-la à Fé Católica Apostólica Romana. Nossa alma pertencerá a Maria na medida em que pertencer à Igreja e ao Soberano Pontífice.

Mas isso não basta. Para pertencer a Nossa Senhora, é preciso que nossa alma tenha aquele equilíbrio interior das almas verdadeiramente consagradas a Ela.

Devemos nos lembrar de que o pecado é tudo aquilo que sai da ordem natural; a virtude, aquilo que está de acordo com ela.

Portanto, toda operação da inteligência e todo ato de vontade ou moção da sensibilidade contrários à ordem natural são imperfeição. Só seremos verdadeiramente de Nossa Senhora no dia em que, dentro de nossa alma, entre a inteligência, a vontade e a sensibilidade, reinar aquele equilíbrio das almas verdadeiramente virtuosas.

Imaculada Conceição, catedral de Segovia, Espanha.
Imaculada Conceição, catedral de Segovia, Espanha.
“Nossos bens exteriores – que chamamos de fortuna – presentes e futuros” – Aqui deve entender-se a fortuna e tudo quanto ela traz: a consideração social, as relações, a influência, enfim todas as vantagens deste mundo.

É muito difícil chegar-se às últimas consequências a respeito da consagração da fortuna a Nossa Senhora. Nada há de mais fraudulento nem de mais perigoso do que certa “mentalidade de doador”.

Nossas fraquezas aparecem mais quando damos, do que quando recebemos. Receber é simples, dar é que é difícil.

Se temos dinheiro e fazemos a consagração de São Luís Grignion, devemos considerar que, na medida em que nossos deveres de estado permitam, ele pertence a Nossa Senhora.

E, portanto, cada vez que tomamos nosso dinheiro e o gastamos numa obra de apostolado, estamos cumprindo o prometido, e não fazendo presente algum. Este, já o fizemos de uma vez por todas. Estamos apenas cumprindo uma promessa.

Ora, a “mentalidade de doador” afirma bem o contrário: “Isto desde agora é seu.

Mas olhe: pese o presente, agradeça, dobre-se; e, quando mexer nisto, lembre-se de como sou bom; de vez em quando, faça a isto uma pequena alusão, para me consolar, porque se eu não o notar, não me inclinarei a dar outras coisas”. Nada há de mais chocante! É a miséria da “mentalidade de doador”.

Muitas vezes vemos isto em benfeitores de paróquias. Se o vigário não se desdobrar em agradecimentos, não cumprimentar o benfeitor em seu aniversário, não lhe mandar votos de boas festas, e não lhe fizer sentir que ele é prodigiosamente caridoso para com Deus – uma espécie de mendigo que muito lhe deve – então não virão outros benefícios.

Não devemos ser assim com a Causa da Igreja. E muito menos com a da ortodoxia, que é o cerne da Causa da Igreja. Devemos considerar que, se fizemos esta consagração, o que já está dado não nos pertence.

E se nós nos entregamos nessa Consagração, a fortiori demos o que é nosso. Seria um absurdo dizer: “Meu Deus, meus dedos são vossos, os anéis são meus”.

É portanto a renúncia, a consagração, a entrega do próprio ser com todas as consequências, que essa doação que envolve.

“Nossos bens interiores e espirituais: méritos, virtudes e boas obras” – Esta renúncia, em certo sentido, é ainda mais difícil. Primeiramente devemos estar dispostos a oferecer o bem interno da própria alma, que é um dos bens interiores mais preciosos.

Assim como há momentos em que sentimos agradável a vida de nosso corpo, assim também sentimos, por vezes, agradável a vida de nossa alma.

Devemos estar dispostos a renunciar a todos os deleites interiores, e até às consolações espirituais, desde que seja para maior vantagem da Igreja Católica e para enriquecimento de seu precioso tesouro.

E devemos estar dispostos – propõe-nos São Luís Grignion – a algo que é um requinte ainda maior.

De acordo com a doutrina católica, por disposição da Providências Divina a reparação de nossos pecados é feita, parte nesta vida, parte no Purgatório, em dosagens de que apenas Deus é o verdadeiro conhecedor.

De uma coisa entretanto estamos certos: pelos pecados que cometemos, ainda que deles nos arrependamos e nos sejam perdoados, iremos expiar.

Mas Deus Nosso Senhor toma em consideração também as nossas boas obras, em razão do que Ele pode nos dispensar de uma parte desses castigos.

Apesar da opinião contrária dos católicos liberais, esses castigos são em geral terríveis. Já nesta vida as moléstias, a perda da fortuna, os embaraços na família, as complicações, as dificuldades, as desventuras de toda ordem podem ser expiações que se sofrem, pelo mal que se praticou.

No Purgatório, porém, a expiação é imensamente pior. A doutrina da Igreja a respeito do Purgatório é muito diferente da que estamos acostumados a ouvir.

O Purgatório é terrível. Não é uma espécie de piedosa tapeação que Deus colocou na estrada do Céu, que queima um pouco, por alto, mas de que se sai relativamente ileso, como se ele fosse apenas um pouco mais quente do que o banho normal.

Em nossos dias, chega-se a dizer que o Purgatório é algo meio simbólico, um lugar onde a alma fica, vagamente aborrecida por não poder entrar no Céu, como quem espera sua vez numa fila de ônibus.

Às vezes passam alguns anos na espera da condução, mas as queimaduras não são maiores do que as produzidas pelo sol.

Não é essa a doutrina católica. Sabemos que o Purgatório queima. O seu sofrimento é de fato terrível. Mas Deus Nosso Senhor, em Sua bondade, em geral diminui os sofrimentos neste mundo e no outro.

São Luís Grignion propõe, contudo, que se faça um ato que é o fino fio da doação, o que ela tem de mais cruciante, ato este que consiste em renunciarmos ao mérito das nossas boas obras.

Assim, ficamos expostos a receber os castigos que os nossos pecados merecem. Se fizermos um exame de consciência, veremos quantos castigos nos estão preparados.

Ora, com essa consagração nos dispomos a que Nossa Senhora aproveite esses méritos segundo as maiores glórias, intenções e interesses da Igreja Católica.

E ficamos desnudos até do que possa haver, naquilo que praticamos, de expiatório em nosso favor, e de meritório aos olhos de Deus.

Ao que não renunciamos


Há algo, entretanto, a que evidentemente não podemos renunciar: é o grau de glória que nos está preparado no Céu, em recompensa de nossas ações.

Nossa Senhora de Coromoto, padroeira da Venezuela e da América
Nossa Senhora de Coromoto, padroeira da Venezuela e da América
Não poderíamos oferecer de ter menos glória no Céu em favor de outros. Aí a justiça de Deus interviria. À exceção disso, porém, renunciamos a tudo.

Esta renúncia, pensando-se bem, é terrível. Senão vejamos: quem ler estas considerações com espírito de devoção, adquirirá méritos que lhe poderão tornar a vida mais suave.

Mas, se for escravo de Nossa Senhora, tais méritos de nada lhe adiantarão. Terminada a leitura, poderá sofrer um castigo, a fim de purgar os pecados que cometeu, porque os méritos da leitura não foram aplicados a si, mas a outrem. Como escravo de Nossa Senhora, até isso entregou.

Como vemos, é bem evidente que seria de grande vantagem ter os resseguros das obras de piedade, das indulgências, etc.

É árdua, com efeito, esta escravidão. São Luís Grignion, contudo, fala mais adiante a respeito da magnificência de Nossa Senhora.

Aplica então um ditado de camponeses bretões à bondade de Maria Santíssima: “pour un oeuf Elle donne un boeuf”por um ovo Ela nos dá um boi. Se nós Lhe damos tudo, até o extremo da doação, qual é a recompensa que nos fica preparada?

É incalculável, pois é certo que Ela nunca se deixa vencer em generosidade.

E se a nossa generosidade for do tamanho de uma montanha, a d'Ela será igual a um universo, perto do qual nossa generosidade não será senão um grão de areia.

Há todas as razões, portanto, para se fazer esta consagração; razões de amor e razões de esperança. Recordemos os sacrifícios oferecidos a Deus por Caim e Abel.

O de Abel foi honesto, por isso aceito por Deus; o de Caim, por ter sido desonesto, foi rejeitado. Nós devemos, dentro da medida da fraqueza humana, fazer esta consagração, oferecendo-a como o sacrifício do justo Abel.

Não a devemos fazer à maneira de Caim, com a finalidade de ficarmos contentes conosco. A seriedade e a gravidade desta Consagração não permitem que a façamos para esse fim.

São Luís Grignion lembra ainda que há certas pessoas pelas quais, por obrigação de estado, devemos rezar.

É bem evidente que Nossa Senhora o quer, e nós podemos fazê-lo tranquilamente, sem recear de entrar em choque com a consagração. Se quisermos oferecer nossos méritos na intenção de outras pessoas, podemos pedir a Maria que os aplique nesta direção, pois não renunciamos ao direito de pedir.

Seria como se alguém nos desse uma biblioteca e, ato contínuo, pedisse emprestado um livro. Damos todos os méritos a Ela, e em seguida Lhe pedimos algo. Será que Ela se recusará a nos atender?





Motivos que nos recomendam esta devoção


São Luís Maria Grignion de Montfort
São Luís Maria Grignion de Montfort

Capítulo V


Nos tópicos 135 a 182, São Luís Maria Grignion de Montfort discorre sobre as vantagens que há em nos consagrarmos como escravos a Nossa Senhora.

A devoção de São Luís Grignion de Montfort consiste na doação completa de nós mesmos a Nossa Senhora na qualidade de escravos. Escravos, porque damos a Ela mais do que um filho pode dar.

As relações de um filho com sua mãe são muito mais íntimas, muito mais próximas, muito mais profundas do que as relações de um escravo com seu senhor.

Mas, em face de sua mãe ou de seu pai, o filho conserva direitos. Em face do seu senhor, o escravo como que não retém direitos. Por isso, a renúncia de si, feita por aquele que tem promessa de escravidão a Nossa Senhora, é, num certo sentido, mais profunda do que a que faz aquele que se considera simplesmente filho d'Ela.

São Luís Grignon não teve a intenção de excluir o apelativo filho, mas acumula ambos. É por nos sentirmos filhos de Nossa Senhora, e por reconhecermos n'Ela, além de uma Mãe perfeita e incomparável, a Mãe de Deus, que somamos à condição de filhos também a de escravos. Sem perdermos a condição de filhos, acrescentamos-lhe a de escravos.

Esta devoção significa, pois, uma renúncia muito profunda de nossa parte. Que vantagens nos traz? Podem elas ser resumidas em determinados pontos, alguns dos quais já tratamos.

Relembrando o papel de Maria Santíssima no Corpo Místico de Cristo – é Ela quem gera este mesmo Corpo – e quão grande intercessora e medianeira é entre Nosso Senhor Jesus Cristo e os homens, compreenderemos que tudo quanto está mais ligado a Nossa Senhora está mais próximo de Deus.

Já mencionamos uma comparação a respeito da posição da Virgem Santíssima na vida da graça, segundo a qual Ela está para Nosso Senhor como o cristal que cobre a Sagrada Hóstia no ostensório está para a própria Eucaristia.

Não podemos distinguir a operação pela qual olhamos o cristal, da operação pela qual olhamos a Eucaristia. Assim, não podemos separar a devoção a Nossa Senhora da devoção a Nosso Senhor.

São uma só e mesma coisa. Na devoção a Maria Santíssima temos o melhor e o único meio verdadeiro de atingir a devoção a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Sendo Nossa Senhora o canal, quem por aí entrar, até onde chegará? Até seu ponto terminal. É Ela o meio para lá se chegar. E quem se serve completamente do meio chega necessariamente ao fim.

Se, portanto, uma alma colocar-se numa união muito estreita com Nossa Senhora, alcançará certamente uma íntima união com Nosso Senhor.

No ato de escravidão a Nossa Senhora não se trata apenas de conseguir uma união muito íntima com Ela, mas de obter a união mais íntima que uma criatura, nas nossas condições, pode jamais obter.

Essa é a nota característica da devoção de São Luís Grignion. Não se pode dizer que é um método de união muito estreito a Maria Santíssima. É muito mais.

Por muito que esforcemos nosso espírito, não descobriremos um método de união que vincule mais uma criatura a Nossa Senhora do que este.

Pois: se, além de filho, alguém se dá inteiramente a Ela como escravo; se tem a intenção de tirar, da Doutrina da Igreja, todas as consequências a respeito d'Ela; se vive assim numa união íntima e constante com Maria Santíssima, forçosamente chegará ao último ponto possível da devoção a Ela, pois não parece concebível que a devoção à Virgem Santíssima possa chegar a um grau de união, de intimidade, de perfeição maior do que este que São Luís Grignion preconiza.

Nosso Senhor é o prêmio da escravidão a Nossa Senhora


O problema, que consistia em saber qual a vantagem que havia em praticar esta devoção, se desloca para outro ponto: qual a vantagem em se ter a união mais íntima que uma criatura possa jamais ter com Maria Santíssima?

A resposta vem por si: Basta considerar quem Ela é. Maria é nossa Mãe, e ao mesmo tempo Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo. Como nossa Mãe, Ela usa para conosco – se fosse respeitoso dizê-lo – de todos os preconceitos, parcialidades e parti-pris que uma boa mãe tem em relação ao seu filho.

O amor materno chega quase à fraudulência. O demônio, em muitas manifestações nas quais é obrigado a falar de Nossa Senhora, faz à Virgem a acusação de que Ela perturba a lei da Justiça e comete fraudes contra o inferno.

É uma injúria, uma blasfêmia. Nossa Senhora é incapaz de fazer algo que tenha uma só gota de mal. Mas isso significa que sua misericórdia e proteção maternas são levadas a um tal ponto, que realmente chegam ao inimaginável, ao inconcebível.

Nossa Senhora é incomparavelmente melhor do que todas as mães da Terra. Ela nos ama muito mais do que nossa mãe terrena.

Esta, em comparação com Nossa Senhora, está mais distante de nós do que uma governante estaria em relação à nossa mãe, eis a proporção.

Maria é muito mais verdadeiramente nossa Mãe do que o é nossa mãe terrena.

Ora, sabemos até onde nossa mãe seria capaz de ir, para nos proporcionar um benefício. Do que, então, será capaz Nossa Senhora?

Jamais vimos na Terra um filho que, de extremo amor por sua mãe, tenha renunciado a tudo e se tenha colocado na categoria de seu escravo.

Doce Nome de Jesus, Sevilha, Espanha.
Doce Nome de Jesus, Sevilha, Espanha.
Até onde irá o amor de Maria, vendo um filho seu agir assim com Ela? Ela, a Mãe perfeita; Ele, o filho perfeito. A recompensa somente poderá ser perfeita.

Mas, no caso da escravidão a Nossa Senhora, a recompensa será proporcionada, não ao valor do que nós demos, mas sim ao valor da generosidade d'Aquela que o recebeu.

É o próprio das mães; se um filho lhe dá um presente, o gosto dela não será o de calcular o preço, e pagá-lo à mesma altura.

O amor materno, por um pequeno presente, retribui com grande abundância. É esta a característica do amor materno.

Assim sendo, se nós nos dermos inteiramente a Nossa Senhora, se lhe dermos tudo quanto podemos dar, e não apenas um pequeno presente, com o que haverá Ela de nos retribuir?

Com uma tal abundância de graças, de benefícios e de proteção, que simplesmente não haveria expressões na linguagem humana que a pudessem traduzir.

Das vantagens da devoção a Nossa Senhora, só há uma coisa a dizer: o prêmio excede toda linguagem. Ela nos dá o que tem de melhor.

E o que Nossa Senhora tem de melhor? É o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, a Sabedoria encarnada.

Há uma profunda expressão disto numa imagem de Nossa Senhora, em que Ela, sorrindo, estende o Menino Jesus ao fiel. Que sentido profundo! Realmente, a melhor recompensa que Ela nos dá é Nosso Senhor Jesus Cristo; é amá-lo e estarmos unidos a Ele, é obedecer-lhe. Esta é uma recompensa que excede a toda linguagem.

Nosso Senhor disse de Si mesmo a Abraão: “Ego sum merces tua magna nimis” – Eu sou a tua recompensa exageradamente grande. Quem recebe a Deus por recompensa, recebe uma recompensa exageradamente grande.

Este é o sublime prêmio da consagração a Nossa Senhora.





A devoção a Nossa Senhora aumenta nossas virtudes,
unindo-nos sempre mais a Nosso Senhor


Assunção de Nossa Senhora. Ugolino Lorenzetti
Assunção de Nossa Senhora. Ugolino Lorenzetti
Com o auxílio da graça, nós praticamos em nossa família de almas uma série de virtudes através das quais desejamos unir-nos muito especialmente à Igreja Católica, o Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo: a virtude do senso católico, da pureza, do senso do sacrifício, da renúncia de si mesmo, do gosto pelo trabalho, pela mortificação, pelo esforço, o gosto pelo método naquilo que não seja geométrico, etc.

Enfim, nós desejamos adquirir todas as virtudes, para unirmo-nos a Nosso Senhor.

Ora, a melhor forma de se adquirir essas virtudes é praticar a devoção a Nossa Senhora. É Maria quem nos obtém essas virtudes de modo excelente, de maneira mais direta, mais rápida, mais segura do que qualquer outra forma.

Isto, na ordem prática das coisas, se opera não apenas ouvindo-se uma explicação de São Luís Grignion, ou lendo o Tratado da Verdadeira Devoção e guardando tudo na memória, mas adquirindo-se um determinado teor de vida espiritual que devemos desejar assumir.

Este teor consiste num conhecimento muito sério do que podemos esperar de Maria, e de como agir em relação a Ela.

A devoção a Nossa Senhora aumenta nossa capacidade de sofrer


Em plano muito mais elevado, podemos esperar de Nossa Senhora aquilo que um filho espera de sua mãe?

Há duas espécies de mães: a boa e a pseudo-boa. A mãe pseudo-boa tem pena do filhinho e não quer que ele sofra.

Ela pactua com todas as traquinagens do filho, com todas as suas faltas no cumprimento do dever, com toda a sua moleza, dispensando-o de todas as regras e prejudicando irremediavelmente a formação do seu caráter.

Mas há outro tipo de mãe que, dada a contingência atual do homem, sabe que não há outro meio para ele, senão sofrer, sofrer e sofrer muito, para dilatar a alma, santificá-la, engrandecê-la.

Sabe que é preciso sofrer para estudar, que é preciso sofrer para lutar na vida, que é preciso sofrer para viver, sofrer enfim em todas as circunstâncias. Sabe, em última análise, que o homem vale na medida do que sofre.

Esta mãe cuida de aliviar os sofrimentos de seus filhos, na medida em que isto seja possível e não lhes cause prejuízo. Mas toda a medida de sofrimento que verdadeiramente a educação exija, uma boa mãe quer que o filho a atinja.

Anunciação. Fra Angelico. Museu do Prado, Madri.
Anunciação. Fra Angelico. Museu do Prado, Madri.
Ela simplesmente limita-se a ampará-lo no sofrimento, de tal forma que ele tenha força e coragem para sofrer o que deve. Mas ela quer que ele sofra. Nossa Senhora procede por essa forma.

Haveria ilusão em tomar as vidas de santos, os florilégios de Nossa Senhora, e ver de modo unilateral certas graças excepcionais que Ela concede.

Por exemplo, São Francisco de Sales, no auge de uma tentação atroz relacionada com o problema angustiante da predestinação, emagrecendo, definhando, numa esterilidade espiritual pavorosa, com uma procella tenebrarum dentro da alma, aproxima-se de uma imagem de Nossa Senhora e recita o Memorare; imediatamente as nuvens se dissipam, e ele se sente cheio de paz e de tranquilidade; a crise espiritual estava resolvida.

Tendo-se um sem-número de casos destes, não se pode deixar de sentir uma impressão profundamente edificante e muito útil para a vida espiritual. Mas ela não deve ser unilateral.

Nossa Senhora alivia amiúde as provações de nossa vida espiritual, como uma boa mãe que reduz o sofrimento do filho na medida do indispensável.

Mas há um limite necessário para todo sofrimento, e não é um limite pequeno. Dele Nossa Senhora não nos tira.

Não se pense que a devoção a Nossa Senhora é uma espécie de morfina para a vida espiritual, que, uma vez ingerida, dissipa todas as dores.

Não, Nossa Senhora – e São Luís Grignion insiste sobre isto – não tira do ombro do fiel o peso da cruz, mas lhe dá forças abundantes para carregá-la.

Ela lhe dá o amor à cruz e ao sofrimento. Este é o fruto da devoção a Nossa Senhora.





A graça de possuir uma grande intimidade com Nossa Senhora


Nossa Senhora, Sede da Sabedoria
Nossa Senhora, Sede da Sabedoria
Devemos compreender, portanto, que na devoção a Nossa Senhora há duas coisas a pedir.

Reconhecendo que somos homens fracos, que não somos atletas na vida espiritual, devemos pedir a Ela que nos socorra nas aflições que nos parecem muito pesadas.

É um esplêndido pedido, e Ela no-lo atenderá muitas vezes. Sempre que, na medida da Providência de Deus, for possível socorrer-nos, Ela o fará.

Mas devemos lembrar-nos de que há uma certa medida de dor que devemos suportar, e por inteiro. Nós mesmos não sabemos bem qual é essa medida; Ela o sabe.

Precisamos então pedir-Lhe forças para a suportar. Neste ponto, no equilíbrio destes dois pedidos, é que está a providência de Nossa Senhora.

Imaginemos uma pessoa que leva sua vida quotidiana, a qual tem sempre dois aspectos diferentes.

Há períodos em que vivemos a rotina comum: é o trabalho de ir e voltar da escola, de preparar a lição, de visitar um parente. É uma engrenagem comum, um quase prosaísmo quotidiano.

Mas há outro aspecto da vida do homem, que são as ocasiões dos grandes sofrimentos, em que ele não tem apenas os aborrecimentos da vida de todos os dias, mas em que arca com o peso de sofrimentos excepcionalmente grandes.

Numa e noutra destas situações da vida espiritual, imaginemos uma pessoa que saiba verdadeiramente praticar a devoção de São Luís Grignion.

Nas pequenas dificuldades da vida quotidiana, ela se lembrará de que tem em Nossa Senhora uma Mãe. Não só várias vezes durante o dia, mas terá disto uma consciência habitual e permanente.

Quando estiver em dificuldades, quando tiver problemas, ainda que sejam minúsculos, pedirá o socorro de Maria, dirigir-se-á a Ela. Em todas as circunstâncias correntes da vida, estará rezando à Virgem Santíssima.

Viverá numa permanente intimidade com Nossa Senhora, para tudo pedindo-Lhe socorro. Numa perplexidade, pedir-lhe-á que a faça ver o verdadeiro caminho.

Já nas grandes ocasiões, pedir-lhe-á forças para suportar o peso das provações excepcionais, obtendo com isto energia para os atos de heroísmo que muitas vezes a vida espiritual exige de cada um.

Se uma pessoa souber oferecer todos os seus atos em união com Nossa Senhora e segundo as intenções d'Ela, se souber pedir constantemente o Seu auxílio em todos os momentos, sua vida espiritual crescerá maravilhosamente.

Se está distraída na leitura, por exemplo, pedir que Ela a faça, apesar disso, tirar frutos; se sai à rua e vê alguém que está cometendo um pecado, pedir por aquela alma; se tem uma tentação, pedir força para resistir; se vê uma alma que sofre, pedir por ela; enfim, recorrer continuamente a Nossa Senhora.

Podemos dizer que não há melhor programa para a vida espiritual. Isto exige, porém, toda uma compenetração e todo um esforço de vontade.

Nossa Senhora de Lourdes
Nossa Senhora de Lourdes
Nossa Senhora, panacéia para a vida espiritual


Das provações inerentes à vida espiritual ou impostas pela fidelidade à Igreja, há uma muito árdua, pela qual todos devemos passar. É a sensação de aridez, de estagnação, de imobilidade aparente de todas as coisas.

Entra ano, sai ano, e a vida espiritual parece não progredir. É a vida de apostolado que se debate sempre nos mesmos problemas; é algo que vai acontecer e se consegue evitar; mais tarde é outro mal que está para surgir, e se consegue impedir; novamente outro imprevisto, e chora-se porque não se o evitou, mas fica-se vigilante para outro que está para acontecer.

Nos primeiros momentos, ter-se-á a sensação de montanha russa. Esta diverte quando se dá nela uma volta.

Mas passar nela alguns anos é humanamente insuportável, e sentimo-nos tentados a acabar com aquele sobe-e-desce, a fim de vivermos como um homem particular qualquer.

Este prolongamento contínuo da mesma ordem de coisas aparentemente imóvel é como navegar no mar sem ponto de referência.

Fica-se navegando, sabe-se pela posição das estrelas que se está mudando de posição, mas, exceção feita disto, não se tem noção de movimento.

E quanto de esforço despendido para se navegar! Seria a sensação dos remadores de uma galera, que tivessem a impressão de que o barco não se move do lugar.

É a sensação de enfaramento, de monotonia, que por vezes pode-se ter na vida espiritual e na de apostolado.

Para tais ocasiões, a solução é o recurso a Nossa Senhora. Rezar a Ela, que é o remédio para tudo. Costuma-se dizer que não se devem admitir panacéias.

Há uma exceção: Nossa Senhora é verdadeiramente uma panacéia, exceto para a má vontade de quem positivamente não quer ser bom. “Qui creavit te sine te, non salvabit te sine te” – Aquele que te criou sem teu concurso, não te salvará sem a tua colaboração, diz Santo Agostinho.

Esta verdadeira devoção a Nossa Senhora nos dá possibilidades de eficácia incalculáveis, no serviço da Igreja.

Tomemos, por exemplo, um contrarrevolucionário que pratica seriamente esta devoção, e que assista a uma reunião de formação.

O mérito de ter comparecido à reunião reverte às mãos de Nossa Senhora. E Ela, que conhece melhor os interesses da Igreja do qualquer homem, aplicá-lo-á de acordo com a Sua Sabedoria.

Assim, além do apostolado que faz comparecendo às reuniões, pode fazer um bem maravilhoso em um outro plano. Bem pode ser que esteja participando de modo invisível, sem o saber, dos mais altos destinos da Igreja, da luta entre a Esposa de Cristo e a anti-Igreja.

Ele não o sabe, mas Nossa Senhora terá nisto aplicado seus méritos, e está produzindo frutos que ele nem sequer pode imaginar. É o que há de mais certo, pois Nossa Senhora não esbanja os nossos méritos.

Ela os aplica com a máxima sabedoria possível. Portanto, o que fazemos quando os confiamos à Sua sabedoria é aproveitá-los ao sumo.





A escravidão a Nossa Senhora dá valor incalculável às nossas boas obras


Nossa Senhora de Guadalupe, México.
Nossa Senhora de Guadalupe, México.
Contudo, qual é verdadeiramente o mérito das nossas ações?

A presença a uma reunião, por exemplo, tem um certo mérito, enquanto ato feito por amor à Igreja, e enquanto representa a privação de um lazer, de um repouso, de um divertimento, para trabalhar para Ela.

O mérito de uma ação está, de um lado, em que ela seja intrinsecamente boa, e de outro nas disposições internas com que a alma age. São disposições que têm um certo lusco-fusco, uma mescla dos defeitos e qualidades que existem em cada um de nós.

Mas as ações de Nossa Senhora têm mérito incomparável. São Luís Grignion diz que Nossa Senhora teve mais méritos em um ponto de costura, dado numa roupa para o Menino Jesus, do que São Lourenço deixando-se queimar vivo para confessar a Jesus Cristo.

Ora, devemos nos lembrar de que nossas ações, enquanto escravos de Nossa Senhora, de algum modo participam da ação d'Ela. De certa forma é Ela que está agindo em nós.

E, portanto, há um valor, uma virtude e uma eficácia que nossa ação recebe de Nossa Senhora, pela qual ela passa a valer muito mais do que poderíamos merecer por nossos próprios méritos.

Não há, portanto, mais alto nível de eficácia de vida e de ação do que neste método de devoção.

A maldade humana e a devoção a Nossa Senhora


O homem tornou-se, após o pecado original, não apenas ruim, mas péssimo. A maldade e a miséria humanas tornaram-se traços indeléveis de sua natureza corrompida.

Estamos, com isto, prestando um depoimento a nosso respeito. Com efeito, enquanto homens, nossa miséria é tão grande que, se dela tivéssemos noção, facilmente seríamos levados ao desânimo.

Madonna della Strada, Chiesa del Gesù, Roma.
Madonna della Strada, Chiesa del Gesù, Roma.
Muitos, meditando acerca do contraste entre Deus e a nossa miséria, desnorteiam-se. Julgando não merecer a Sua misericórdia, são levados, a fim de sobreviver, a julgar que Deus exige menos deles.

A razão deste desespero está em que tais pessoas não colocam Nossa Senhora dentro desse panorama, de si trágico.

Realmente, Deus é tudo quanto d'Ele sabemos pela Revelação. Quanto a nós, sabemos o que somos; ou, melhor dizendo, o que não somos.

Mas entre nós e Jesus Cristo há Nossa Senhora. Esta mediação d'Ela ligada à de Jesus Cristo, que é o único mediador entre Deus e os homens, restabelece inteiramente aquele canal pelo qual nos podemos salvar, apesar de nossas misérias.

Com isso presente, encontramos de um lado uma paz muito grande dentro do reconhecimento de nossas misérias, e de outro o modo de afirmar a moral mais rigorosa e mais severa, sem ceder ao desespero nem cair no jansenismo.

Ela é a Arca da Aliança, em função da qual tudo toma seu verdadeiro aspecto e se torna animador para a vida espiritual.





Figura bíblica desta perfeita devoção: Rebeca e Jacó


Isaac abençoa Jacó a instâncias de Rebeca. Gerrit Willemsz Horst, (1612–1652),  Dulwich Picture Gallery, Londres.
Isaac abençoa Jacó a instâncias de Rebeca.
Gerrit Willemsz Horst, (1612–1652),  Dulwich Picture Gallery, Londres.

Capítulo VI


Nos tópicos 184 a 212, São Luís Grignion nos interpreta a figura de Jacó à luz da devoção a Nossa Senhora.

História de Jacó

O velho Isaac estava cego, e tinha dois filhos: Esaú e Jacó.

Esaú era um homem cuja personalidade se depreende através da narração bíblica: extremamente forte, caçador, saía muito de casa.

Era tão felpudo que, quando Jacó teve de se apresentar diante do pai, revestiu sua mão e o pescoço com uma pele de cabra; e o pai, tocando-o, pensou que fosse Esaú.

Este também tinha certo cheiro, pois quando Jacó, vestido com as roupas de seu irmão, aproximou-se de Isaac, este exclamou: “O cheiro de meu filho é como o cheiro de um campo florido que o senhor abençoou” (Gen. XXVII, 27).

Era pois um personagem muito primitivo, sujeito a apetites e volições destemperadas e primitivas.

Nota-se isto, por exemplo, no seu procedimento com relação ao prato de lentilhas que Rebeca, sua mãe, tinha preparado para Jacó, seu predileto.

Esaú entrou, viu o prato e o pediu para si. Jacó respondeu que o daria em troca do seu direito de primogenitura.

Com um apetite devorador, Esaú, que trazia comida da caça, levado pela gula, quis comer logo o prato de lentilhas, e para isto renunciou ao seu direito de primogenitura.

Era pois um homem de apetências formidáveis, robusto, vigoroso, mas estuante de todas as forças descontroladas da natureza.

Isaac, sentindo-se já muito velho, resolvera dar a bênção de primogenitura a Esaú. Disse-lhe que fosse caçar dois cabritos, para que, após comê-los, lhe desse a bênção.

Tendo saído Esaú, Rebeca, que amava mais a Jacó, chamou-o e disse-lhe que tirasse dois cabritos do seu rebanho, mandou prepará-los e oferecê-los a Isaac.

Jacó então aproximou-se de Isaac, com as roupas de Esaú e as mãos e o pescoço revestidos de pele de cabra. Isaac, duvidando que fosse Esaú, tocou-o e julgou ser realmente seu filho primogênito. Deu-lhe então a bênção.

Quando Esaú voltou e verificou a situação, protestou aos gritos, mas nada mais havia a fazer. Isaac, informado do artifício – e isto é muito misterioso – não quis mais retirar a bênção de Jacó.

Esaú pediu-lhe ao menos uma bênção secundária, a qual lhe foi dada; mas não era mais a bênção destinada ao filho bem-amado, ao primogênito.

Segundo a expressão de São Luís Grignion, Jacó ganhou a bênção do Céu, e Esaú a da Terra.

Nossa Senhora da Consolação, Cracóvia, Polônia.
Nossa Senhora da Consolação, Cracóvia, Polônia.

Interpretação da história de Jacó


Essas duas figuras são, para São Luís Grignion, a imagem dos predestinados e dos réprobos, dos que são preferidos por Deus e dos que não o são.

Esaú, a figura dos réprobos – Vemos que Esaú representa o homem rico em dons naturais, mas descontrolados.

É o tipo do homem que não é capaz de se governar a si mesmo, no qual o estuar das forças da natureza, dos apetites, dos desejos e das volições é tal, que ele pega o que lhe apetece e caminha de acordo com os instintos inferiores.

Esaú caça porque tem vontade de caçar; encontra um prato de lentilhas, tem vontade de comê-lo, e faz o absurdo de trocar por ele o direito de primogenitura. É levado constantemente por seus instintos, por seus apetites.

Jacó, figura dos predestinados – Jacó era o tipo do bom filho, que um anti-católico poderia ser levado a chamar de carola.

Estava sempre em casa, e era muito afeiçoado à mãe, que tinha também uma predileção toda especial por ele, filho mais moço.

É mais fraco, mas é homem que se governa muito mais, no qual a razão, o bom senso e o equilíbrio interno de todas as forças o levam para uma vida morigerada e criteriosa. Por isso a preferência da mãe se fixa sobre ele, e não sobre o mais velho.

A primeira nota que distingue o predestinado é a preocupação de se governar a si próprio. Ele não é levado pelos seus apetites, nem por suas volições, mas inteiramente por sua razão e por sua vontade.

Ele quer o que sua inteligência mostrou dever querer, e só faz aquilo que sabe dever fazer.

Ele não é um filho dos impulsos desordenados nem dos meros instintos, nem um filho da correnteza, mas está de pé por si, governa-se e orienta-se por sua razão.

Em segundo lugar, ele é estimado por sua mãe, e é dela o predileto. Ele a agrada e tem palavras que atraem a sua benevolência; ela, por isso, ama-o mais.

Por fim, ele é o que recebe de Deus um papel que, à primeira vista, talvez não lhe pertencesse.

A figura de Jacó aplicada aos escravos de Maria


São Luís Grignion aplica estes sinais aos que fazem a consagração a Nossa Senhora como escravos.

Nossa Senhora de Todas as Virtudes, Catalunha, Espanha.
Nossa Senhora de Todas as Virtudes, Catalunha, Espanha.
Um homem é de fato contrarrevolucionário na medida em que se orientar por pensamentos. É um homem que tem princípios, tem normas, tem máximas e tem uma conduta razoável e lógica.

Não será um contrarrevolucionário se quiser deixar-se guiar pelo rio caudaloso da espontaneidade; se quiser fazer só aquilo que no momento lhe parece agradável, e do modo que lhe parece mais agradável; se quiser fazer tudo que lhe apetece no momento; se simpatizar com as pessoas sem razões profundas, mas apenas de modo superficial, sem cogitar se as pessoas merecem ou não.

Este homem nunca poderá ser da estirpe dos prediletos de Nossa Senhora. Para pertencer a Ela supõe-se, antes de tudo, um controle, um domínio, uma escravidão da parte inferior do homem à parte superior, sem a qual nada de bom se pode fazer.

Há, portanto, duas notas que se sobressaem nos predestinados e nos escravos de Nossa Senhora, representados pela figura de Jacó.

Eles não se entregam, à maneira de Esaú, ao desregramento de todos os seus apetites, mas fazem dos princípios a razão de ser da sua vida.

Por outro lado, sua condição supõe uma particular devoção a Nossa Senhora.

Com efeito, o fato de sentirmos que somos especialmente amados por Ela, e de A amarmos muito particularmente, estabelece uma relação de devoção muito intensa, de ardor muito grande, de dedicação e de recurso constante a Ela.

Quando encontramos essas duas características, temos um predestinado, um Jacó. Quando elas estão ausentes, temos um Esaú.

A propensão para ser Esaú e a predestinação


Quando aludimos aos predestinados, não queremos dizer, de nenhum modo, que uma pessoa que tenha grande propensão para Esaú não seja chamado a ser Jacó. Dá-se até quase o contrário.

Na vida espiritual, as mais belas batalhas são ganhas contra os defeitos dominantes. E quando os possuímos, somos chamados por Nosso Senhor Jesus Cristo a sermos exímios na virtude oposta.

Portanto, se quisermos conhecer esta virtude, devemos saber qual é o nosso defeito dominante. A virtude oposta será a preponderante.

Se se tem, portanto, uma tendência muito grande, um ímpeto muito forte para as coisas que caracterizam Esaú, deve-se ver nisso um chamado muito forte para o combate a esses defeitos. Nascerá então um Jacó.

O que marca o predestinado é o fato, não de ter alguém este ou aquele temperamento – porque entre todos os temperamentos encontramos predestinados – mas o de ter correspondido às graças necessárias para ver estas coisas, para ter uma particular devoção a Nossa Senhora e compreender, com isto, qual o dever a cumprir, e animosamente caminhar nessa trilha.





“Filho, dá-me o teu coração”


O ponto crucial em que a exposição de São Luís Grignion termina, e com o qual pomos fim a esta série de comentários, é este: há os que vivem ao léu, e outros que lutam contra seu fundo mau.

São duas famílias espirituais completamente diferentes.

Se quisermos estar na linha de nossa salvação, de nossa predestinação, devemos pertencer a esta segunda família. É a guerra a esse maldito “laissez faire, laissez passer” (deixar fazer, deixar passar, ou seja indolência – n.d.c.), por onde a alma se deixa levar preguiçosamente nas águas da fantasia e da “espontaneidade”. Este é o ponto capital.

Se vivermos dispostos a lutar com grande coragem nessa batalha, não há o que não nos esteja prometido. Caso contrário, tudo estará perdido, não seremos filhos da promessa; para nós estarão cerrados os Céus.

É neste sentido que os Céus se cerram para aqueles que não os querem abertos. Não há homem a quem os Céus não se abram, desde que correspondam à graça de Deus, que jamais falta a ninguém ao longo de toda a vida.

O hábito mais “delicioso” para o qual nós brasileiros temos tendência é viver ao léu de si mesmo.

É a substância do gozo da sua vida. E nada há mais desagradável do que transformar-se de barco à vela em lancha a motor, e navegar contra a correnteza.

Eis o ponto que divide os filhos da luz dos filhos das trevas.

O programa que daí se depreende é todo de atitude interior. Nosso Senhor nos pede o que de mais nobre nos poderia pedir, mas também o que de mais penoso poderia haver.

Há uma imagem de Nosso Senhor com o Coração na mão, dizendo ao fiel prostrado aos Seus pés: “Filho, dá-me o teu coração”.

Não representa isto mero sentimentalismo, nem significa dá-lo fisicamente.

Seria muito fácil se pudéssemos fazer uma grande operação toráxica, tomar o coração e dá-lo a Nosso Senhor, dizendo: “Toma-o, mas deixa-me viver ao léu”.

Mas Nosso Senhor quer precisamente que deixemos de correr ao léu, ao léu da nossa fantasia, de nosso capricho, ao léu dos acontecimentos.

Governar-nos debaixo da Sua Lei, eis o que Nosso Senhor deseja de nós. Isto é dar-se a Nosso Senhor. É penoso, mas é lindo, como tudo que é penoso e que conduz a Nosso Senhor. Tem a beleza da Sua Cruz.

E nós, da geração-nova, temos uma padroeira que nos ensina maravilhosamente, de forma atraente e cheia de ternura, a maneira excelsa de conseguir tal força de alma, apesar de nossa extrema fraqueza e impotência: Santa Teresinha do Menino Jesus.

Trilhando a sua “pequena via”, chegaremos certamente a este enorme grau de perfeição na virtude. Esta a sua doce e suave promessa.





FIM dos comentários



17 comentários:

  1. Salve Maria!
    A leitura do Tratado da Verdadeira Devoção a Nossa Senhora é importantíssima para todo católico, pois esclarece de maneira muito simples como devemos nos dirigir a Santíssima Virgem e nos encaminha para o Céu.

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  2. Olá, desculpe a pergunta fora de contexto, mas ao ver o belo artigo do sr. Plinio Corrêa, e sabendo do seu importante trabalho para a divulgação da fé católica, gostaria de saber o que pretende a Associação Monfort a dedicar boa parte do seu conteúdo para a difamação do sr. Plinio Corrêa e dos Arautos do Evangelho?

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    1. Infelizmente o Sr. Orlando Fedeli saiu da TFP carregado de magoas. lamento que as pessoas ao lerem os artigos da Associacao Monfort, nao se dao ao trabalho de lerem as refutacoes feitas pela TFP. Caso o Senhor queira a refutacao a esses ataques, posso disponibilizar por email...

      basta entrar em contato com
      joaolucasdacruzmaria@gmail.com

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  3. Sr. Plínio Corrêa, parabéns, que Deus o conserve com esta espiritualidade, com este poder de conhecimento. Leio as suas mensagens e é assim que entendo muitos assuntos necessários ao católico.

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    1. Estou de acordo com este comentário.

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    2. Mas informo que DR. Plinio ja faleceu em 03 de outubro de 1995

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  4. Obrigada. Deus abençoe todos vocês

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  5. Rezemos para que a nossa devoção a Maria Santíssima seja cada vez mais sincera e verdadeita. Que o bom Deus nos ajude

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  6. Ola Novamente estou a adorar o seu Blog, mas como pode afirmar que Maria Santissima orou para que o verbo divino encarnasse nela ?? se na anunciação Lc 1.30 o anjo Gabriel disse " “Maria, não temas pois recebeste grande graça da parte de Deus" o que parece demonstrar que ela não sabia, Muito Obrigado mais uma vez. "Tudo com Maria e nada sem Jesus"

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    1. Ela orou para que o Verbo viesse ao mundo e não nela.

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    2. VERDADE LEANDRO, nossa senhora REZOU MUITO PELA VINDA AO MUNDO DO MESSIAS ESPERADO MAS, POR SUA HUMILDADE E PELO VOTO QUE TINHA FEITO, NÃO ESPERAVA QUE FOSSE ELA A ESCOLHIDA. DEPOIS DA ANUNCIAÇÃO DO ANJO ACEITOU OS PLANOS DE DEUS

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  7. Prezado Anônimo,
    Procurei no texto de redação do falecido Prof. Plinio Corrêa de Oliveira apresentado nesta página.
    Não achei a frase exatamente como o Sr a menciona ("Maria Santissima orou para que o verbo divino encarnasse nela").
    A oração pela vinda do Messias era a oração dos Patriarcas, dos Profetas e de todos os bons judeus no Antigo Testamento.
    Não é de espantar que fosse também a oração de Nossa Senhora. Aconteceu que se encarnou nEla!
    A frase mais próxima à que o Sr. cita e que eu achei é que "se Maria Santíssima não tivesse vindo ao mundo, Jesus Cristo não teria vindo". E isso se entende bem, só uma Virgem concebida sem pecado original -- a Imaculada Conceição -- seria a digna Mãe do Messias. E Ele só viria numa Mãe assim. E Maria Santíssima foi concebida sem pecado original por obra e graça do Espírito Santo.
    A partir desse momento, a vinda do Messias nela -- até então impossível -- passou a ser inevitável!
    Eis mais uma das glórias de Maria!
    Atenciosamente

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  8. Caro Sr. Luis Dufaur , antes de mais, Obrigado pela sua cordial resposta, eu referia-me á frase "Não só porque foi Ela quem o pediu – e se Ela não tivesse pedido a vinda de Nosso Senhor, Ele não teria vindo – mas Deus Padre O mandou a Ela, porque só Ela era digna de O receber." incluida no sub-titulo "A oração de Nossa Senhora na vinda do Messias" á parte da oração dos Patriarcas, dos Profetas e dos bons Judeus conforme mencionou, não me admira que o tenha feito apenas curioso porque nunca tinha lido ou ouvido tal afirmação, Grato pela atenção

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  9. O meu humilde "obrigada" pelo envio do testemunho de São Luis .
    Amei a frase seguinte "Na devoção a Maria Santíssima temos o melhor e o único meio verdadeiro de atingir a devoção a Nosso Senhor Jesus Cristo."
    Sem dúvida.

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  10. Maria das Graças Dourado Pimenta8 de novembro de 2016 às 18:11

    Salve Maria
    Somos gratos a todos que nos ajudaram nessa meditação de muito significado espiritual!

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  11. Maria Santíssima que amor maravilhoso sinto por vós .....Quanta ternura ....quanta devoção ....Quisera ser um anjo para fazer jus ao meu amor por vós e ao Teu amor por mim ....vivendo neste mundo ,. entretanto , como me sinto pequena em relação a tudo que de vós tenho recebido...Te amo , Te venero e principalmente Te conheço com Mãe Onipotente

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  12. Como podemos ter acesso a este conteúdo maravilhoso? Gostaria de adquiri -lo.

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